Fruto da anunciada e adiada greve dos profissionais da RNA, pelas piores razões, e como nunca acontecera, o maior órgão da comunicação social do país esteve, pela negativa, em destaque nas agendas noticiosas quer da mídia pública quanto da privada assim como nas redes sociais, em reuniões partidárias, nos óbitos e até em conversas de bar ou de qualquer esquina.
O ministro da Comunicação Social e os membros do conselho de administração da RNA (principais responsáveis pelo extremar de posições dos trabalhadores), seguramente, tiveram os seus piores dias de vida enquanto profissionais. Dias de perda de sono, tal foi a pressão que o problema em si despoletou em Angola e além-fronteiras.
O porquê de se chegar a esse estágio? Naturalmente interroga-se quem não conhece os meandros da situação.

Não vamos aqui retomar e trocar por miúdos os pontos constantes do caderno reivindicativo dos trabalhadores da Rádio Nacional (dez no total), mas tão-somente revelar várias incidências do estágio pelo qual tem passado o gigante da comunicação social angolana ao longo dos tempos.
Crises directivas viveu a empresa decorrentes do momento político do pós-independência entre 1975/1977 que culminaram com a ocupação da sua sede por horas nos escaldantes acontecimentos do 27 de Maio de 1977. Foi seu director geral nessa fase José António de Matos Matoso (morto no fraccionismo).
Paradoxalmente foi no apogeu do monopartidarismo, (1977/1991), estando o país numa situação de guerra, que a RNA passou pelo melhor período da sua existência. Nessa época viveram-se os momentos áureos da radiodifusão nacional. Dentre os rostos mais visíveis dessa epopeia figuraram os radialistas Rui Carvalho, Guilherme Mogas e Luzia Fançony, líderes de uma máquina irrepreensivelmente bem oleada, complementada por quadros de inegável valia cultural e técnica.
Com o multipartidarismo, em 1991, emergiram novas estações de rádio, jornais privados e é por essa altura que alguns dos melhores quadros da RNA começam a sua debandada por irreconciliáveis incompatibilidades com as novas direcções que se sucedem em catadupa a partir de 1992. Nesse período, que se prolongaria até 1997, lideraram a RNA uma comissão de gestão encabeçada por Alves Saraiva (já falecido) e os directores gerais Adelino de Almeida, César Barbosa e Vieira Lopes (este falecido em pleno exercício da função).
Manuel Rabelais entra em cena no período entre 1997 e 2004, com uma agenda que sugeria a retoma da estação. Um novo contexto se instalara e era visível a valorização dos quadros disponíveis. Em 2004, ele é nomeado ministro e acumula a função governativa com a direcção geral, agregando a essa dupla função conflitos de interesses particulares e de grupo lesivos à empresa. Pretensamente sai de cena tempos depois, ensaiando vários modelos de gestão que só pioraram o desempenho da instituição. Nomeia sucessivamente meros figurantes, tais foram os casos de Alberto de Sousa, Eduardo Magalhães e uma comissão de gestão liderada por Filipe Diatezwa, transformados todos eles em verdadeiras marionetes.
Rabelais era a figura que, do mais alto pedestal e à distância, comandava os destinos desse poderoso órgão, sendo ao longo de onze anos o causador do significativo descalabro da RNA. Em 2010, logo depois do CAN de futebol que Angola acolheu, Rabelais é defenestrado do Governo. É substituído por Carolina Cerqueira, que, animada por um indisfarçável sede de vingança, decide limpar, com escárnio, todas as impressões digitais deixadas pelo seu antecessor na Rádio Nacional, em Luanda, Benguela e no Huambo, fundamentalmente. Foram dois anos de má memória para a grande maioria dos profissionais.
Implementados os conselhos de administração nos órgãos de comunicação sociais (OCS), Carolina Cerqueira escolhe para a “Nacional”, como também é chamada a RNA, um mesclado de ex-colegas de faculdade, amigas de outras paragens e antigos profissionais dos tempos em que trabalhara como repórter na sua redacção central. É nomeado PCA Pedro Cabral, locutor e seu ex-colega na Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto. A ementa saiu pior que o soneto: despreparada e desastrada, a equipa não dá conta do recado.
Qualquer coisa como um ano e meio depois, a turma da Carolina Cerqueira é apeada pelo então presidente José Eduardo dos Santos, na campanha eleitoral de 2012. Manuel Rabelais regressa à ribalta com novas e mais poderosas funções: no papel de líder do emergente GRECIMA (Gabinete de Revitalização da Comunicação e Imagem de Angola, uma criação dos filhos do ex-líder para desviar recursos públicos para fins próprios), Rabelais rapidamente se assenhora das funções legalmente reservadas a Carolina Cerqueira, enquanto ministra. Os OCS são comandados, efectivamente, a partir da Cidade Alta.
Constrangida, Carolina Cerqueira assiste à nomeação de um novo elenco para dirigir a RNA. Dele fazem parte vários dos seus inimigos de estimação, nomeadamente Henrique dos Santos, m ex-sonoplasta em quem Rabelais julgou enxergar capacidade para liderar o Conselho de Administração. A nomeação do antigo sonoplasta tem uma explicação: Henrique dos Santos é testa de ferro de Rabelais; é o homem que dá o peito às balas nos negócios, quase sempre escusos, em que o antigo e excelente locutor desportivo não pode dar a cara. Sem qualquer experiência d direcção, nos mais de 30 anos que já levava da casa, Henrique dos Santos não faz melhor do que o seu antecessor. Portanto, a sua nomeação fora mais um desastre, a somar a muitos outros. Com a nomeação do antigo sonoplasta, ficou definitivamente claro que a RNA era disputada por diferentes facções para a realização dos seus intentos particulares. A emissora fora transformada num palco em que elefantes se digladiavam em nítido e inevitável prejuízo para o capim, neste caso os desprotegidos servidores da RNA.
Despreparado, Henrique dos Santos faz uma gestão ruinosa, deixando a empresa depauperada em todos os aspectos. A longa noite na RNA perdura até novembro de 2017, quando, depois de tomar posse, o Presidente João Lourenço nomeia novos lideranças para os OCS. Com isso termina, também, a “longa manu” de Rabelais.
O último capítulo da atribulada novela RNA surge com a indicação de João Melo como substituto de José Luís de Matos, este último, figura manietada nas suas competências tal era o poder omnipresente de Rabelais e do seu GRECIMA no sector.
Publicamente escreve-se e fala-se (sem quaisquer desmentidos) que a inclusão de Paula Simons no actual Conselho de Administração da RNA foi uma aposta pessoal de João Melo. Trabalharam juntos na última campanha eleitoral do MPLA. Os restantes membros do órgão colegial, nomeadamente o seu presidente, são indicações de Frederico Cardoso, o novel ministro de Estado e chefe da Casa Civil do Presidente da República. Cardoso não resistiu ao nepotismo: plantou na presidência do CA da RNA um primo, Marcos Lopes, com quem já trabalhara na Air 26, uma empresa de forte pendor familiar. Decidida a transformar a RNA na extensão dos seus negócios privados, a dupla de primos chama para a importante estratégica pasta das Finanças e Recursos Humanos um outro corpo estranho, Fidel Adão da Silva, ele também proveniente da Air 26. A combinação do desconhecimento de uma realidade chamada Rádio Nacional com a impreparação profissional resulta numa gestão sem arte nem engenho. Gerir a RNA não é o mesmo que gerir uma empresa administrativa ou de sistemas aviônicos. Independentemente das boas práticas, a gestão de RNA requer habilidades extras, que não se adquirem em qualquer banca escolar. Os êxitos da RNA sempre nasceram e se consolidaram em virtude da cumplicidade entre os seus profissionais. O trabalho jornalístico não é mecânico. Se a aposta de Frederico Cardoso na dupla Marcos Lopes/Fidel da Silva foi um estrondoso fracasso, boa também não se revelou a aposta de João Melo em Paula Simons para o pelouro dos Conteúdos. Afastada das lides radiofónicas por mais de 20 anos, período durante o qual se entregou de corpo e alma ao marketing partidário, o regresso de PS foi uma aposta perdida. Perdida no tempo e no espaço, a senhora procura impor-se lançando mão de expedientes como a intriga e a falta de educação. E a isso junta repetidos momentos de histeria em reuniões do seu pelouro. A antecipação do programa Desportivo para as 12H 15contra as 13H30 (uma conquista de décadas), sob o pretexto de retirar audiência ao Jornal de Notícias da LAC das 12H30 foi, até agora, o “melhor”; o fim do programa Debate, ao sábado, entre outros, é tudo quanto Paula Simons “agregou” até agora. E frise-se que essas mudanças, brutais, foram feitas ao arrepio dos profissionais da casa e dos ouvintes. Por mero capricho pessoal, Paula Simons alterou hábitos e rotinas consolidados ao longo de décadas, em claro prejuízo para a credibilidade da emissora de rádio-mãe. Hoje, apenas os oportunistas e desavergonhados enxergam “melhorias” na RNA.
Enquanto a Paula Simons se esmera em estragar o que estava bem, o seu colega das Finanças e Recursos Humanos, aquela irada e enigmática figura que atende pelo nome de Fidel, resmunga pelos corredores da rádio que não aceita ser chamado por colega por qualquer funcionário da RNA. Tem razão! Ele caiu de paraquedas.
Infelizmente é nesta teia em que se vêm enclausurados hoje os profissionais da RNA. Há um facto indesmentível: o poder político não tem ido ao encontro das melhores soluções para a liderança do mais importante órgão de comunicação social angolano. A RNA é hoje dominada interesses escusos, que se sobrepõem ao seu objecto social. Aos olhos dos trabalhadores, as duas apostas de Frederico Cardoso agem com base numa agenda: a destruição da única sobrevivente conquista da RNA, ou seja, o seu capital humano. Como o Estado não desenhou e sustentou uma política de despedimento sólida, a dupla de “visionários” que Cardoso plantou na RNA inventou uma “solução”: a reforma compulsiva de todo o trabalhador que tenha atingido 60 anos de idade ou 35 anos de trabalho. No afã de limparem a casa para abrir espaço para os seus, a dupla já mandou até para casa jornalistas tarimbados que nem aos 60 anos ainda chegaram. “Monstros” da locução na RNA como Joaquim Gonçalves foram antecipada e compulsivamente empurrados para a ociosidade, perante o silêncio cúmplice do ministro da Comunicação Social, um profissional de quem se esperava uma outra perspectiva do jornalismo. Afinal, tal como outros burocratas, João Melo também comunga a ideia de que o jornalista perde todas as faculdades profissionais a partir dos 60 anos…
Na Rádio Nacional de Angola o problema não se esgota na tabela salarial. É preciso olhar para além dela.
É preciso olhar com olhos de ver as insultuosas discrepâncias entre trabalhadores e os ditos gestores. Enquanto se desdobra em artifícios para reduzir cada vez mais os magros rendimentos dos trabalhadores, o Conselho de Administração não oculta a ninguém o luxo com que presenteia os seus membros. Aos jornalistas e outros profissionais da casa faltam transportes, mas os membros do CA desfilam em pomposos Toyotas V8 topo de gama, custando cada um deles mais de 100.000 dólares. Até a Paula Simons, de quem se esperaria alguma coerência, cedeu ao luxo. Em 1992, ela deveria ser contemplada com um turismo BMW na sua condição de deputada eleita pelo MPLA. Declinou a oferta, alegando que o dinheiro empregue para a aquisição da viatura que lhe seria destinada poderia servir outras necessidades dos angolanos. Em 2019, ver a mesmíssima Paula Simons a desfilar num carro infinitamente mais caro que o BMW dá o que pensar…
Em suma: ou muito nos enganamos, ou a RNA não se sustentará até ao final do mandato da dupla Frederico Cardoso/João Melo.
Por ora, a anunciada greve está levantada. Mas até quando? Uma nota final: os actuais líderes da TPA, LAC, Rádio Mais, Rádio MFM são produtos da Rádio Nacional de Angola. Se a rádio é capaz de produzir profissionais que agora brilham noutros horizontes, não é capaz de encontrar soluções internas para o seu próprio governo?
*O autor do texto é um jornalista da Rádio Nacional de Angola que, por razões óbvias, pediu para não ser identificado