Convivendo com serpentes

298

O país não pode continuar a ser um paraíso para os marimbondos. A inexplicável sobrevivência política do ministro das Tecnologias ao escândalo do concurso para o quarto operador da telefonia celular encorajou os restantes marimbondos de que continuamos a viver no reino da impunidade

À sábia, sensata e corajosa decisão de mandar às favas o megalômano projecto do  bairro dos ministérios, o Presidente da República tem de acrescentar, necessariamente, o passo seguinte: o imediato afastamento de todos os seus colaboradores que, directa ou indirectamente, concorreram para que ele caucionasse uma iniciativa que, se levada adiante, lhe causaria incalculáveis dissabores políticos e custaria ao país trilhões de dólares para satisfazer insaciáveis apetites de meia dúzia de sujeitos que tomam Angola como uma herança recebida dos seus pais. 

A Manuel Júnior, ministro de Estado para o Desenvolvimento Económico, e Manuel Tavares, ministro da Construção e das Obras Públicas, os maiores entusiastas do estrambótico projecto, não pode ser dada outra oportunidade de enganarem o Presidente da República. 

Aliás, presume-se (e espera-se) que seja isso em que se traduzirá a garantia dada pelo próprio Presidente da República a Rafael Marques segundo a qual à decisão de “matar” à nascença o Bairro dos Ministérios “haverá novos desenvolvimentos”.

Manuel Júnior vendeu ao país a ideia de que construção de um bairro exclusivamente para ministérios reduziria os custos do Governo com o aluguel de imóveis. Já para o seu homónimo Tavares além de dignificar a função governativa, a construção do novo bairro não só garantiria “muito emprego aos jovens”, como também seria feita sem quaisquer custos para o Estado. 

Ambos mentiram conscientemente. 

Na apurada investigação que fez, Rafael Marques constatou que, desde 2014, o Estado gastou mais de 763 milhões de dólares para acomodar ministérios. Autorizada pelo anterior Chefe de Estado, a compra desses imóveis, alguns dos quais situados na zona nobre de Talatona, visou a “melhoria do desempenho das suas (ministros) funções e consequente prestação de um serviço adequado e eficiente aos cidadãos no âmbito do processo de Administração Pública”. 

Hoje está visto que o desempenho dos ministros não tem nada a ver com escassez de imóveis e menos ainda com o seu requinte.

O exaustivo levantamento dos imóveis adquiridos pelo Estado conduziu Rafael Marques à conclusão de que, “provavelmente, o Estado terá edifícios a mais e não saberá o que fazer deles”. Depois desse fulminante desmentido, esperava-se que Manuel Junior fosse penitenciar-se junto do seu chefe. Não o fez, preferindo manter a patranha.

Outro que foi apanhado na contramão da verdade é o ministro da Construção e Obras Públicas. Mesmo depois de o Presidente da República haver assinado, em 2 de Fevereiro passado, o despacho n. 19/19, através do qual autorizava a celebração de um contrato com a Sodimo para a aquisição de um terreno de 211,7 mil metros quarados pelo valor de 344 milhões de dólares, em no final de Julho passado, o ministro da Construção e Obras Públicas ainda se permitiu à desfaçatez de afirmar que a edificação do bairro dos ministérios não custaria um cêntimo de Kwanza aos cofres públicos.

Portanto, os “novos desenvolvimentos” que se seguirão à decisão presidencial de “não haverá mais Bairro dos Ministérios” tem de seguir a óbvia e imediata demissão quer do ministro de Estado quanto do ministro das Obras Públicas. 

Mas esse episódio proporciona também ao Presidente da República uma outra boa e rara oportunidade: a de se desfazer imediata e de modo irreversível de todos os “marimbondos” que olhe cercam, tolhem os movimentos e condicionam as decisões. 

A limpeza de balneário, que desta feita se pretende séria e profunda, tem de começar no próprio gabinete presidencial, infestado de gente de um passado recente que não se recomenda. Edeltrudes Costa, o director do gabinete de João Lourenço, Frederico Cardoso, ministro de Estado e chefe da Casa Civil, por exemplo, não têm propriamente um passado digno de boas referências. Tanto um quanto outro trabalharam com o ex-presidente José Eduardo dos Santos. João Lourenço por acaso alguma vez questionou a razão por que o seu antecessor se desembaraçou de ambos? Por boas práticas e inatacáveis virtudes não foi, com certeza.

Na nota pessoal que lhe dirigiu, o Presidente da República disse-se sensibilizado “com as revelações” de Rafael Marques sobre os contornos que envolvem o bairro dos ministérios. Mas haverá no texto de Rafael Marques (JLO emboscado no Bairro dos Mistérios e das Mentiras, Maka Angola, 6 de Agosto de 2019) algumas nuances que pudessem escapar ao conhecimento de Edeltrudes Costa ou de Frederico Cardoso? O Presidente da República teria autorizado a celebração do contrato com a Sodimo se os seus colaboradores mais próximos lhe tivessem alertado que o terreno pelo qual o Estado desembolsariaagoraquase 350 milhões de dólares foi parar, em 2002,  ao colo da Sodimo a custo zeropor via do Contrato de Constituição do Direito de Superfície celebrado com o Governo Provincial de Luanda?  Uma simples consulta prévia ao GPL não teria poupado o Presidente do embaraçoso gesto?

Coordenador da Comissão Intersectorial encarregue de negociar “a aquisição de terrenos e propor a modalidade contratual com potenciais investidores privados para a implementação do Centro Político Administrativo”, o outro nome pelo qual atende o megalómano projecto, Manuel Tavares de Almeida não deu conta que estava a empurrar o Estado para a compra de um terreno que era seu? Agora que, mais uma vez, ficou claro que o Presidente da República está cercado por peçonhentos colaboradores, o melhor antídoto é mesmo uma profunda e séria desinfestação do palácio presidencial e do Executivo. O gabinete de João Lourenço e o Executivo não podem continuar a ser uma “olimpíada” em que os colaboradores competem entre si pelo título de quem melhor engana o Presidente da República. 

A  generalidade dos cidadãos angolanos continua a dar crédito a João Lourenço, mas confiam cada vez menos no seu elenco. Sob o comando de Manuel Júnior, a política económica está a revelar-se um desastre. O poder judicial comete sucessivos penalties e auto golos. A explicação da PGR para a notificação levada à casa do ex-presidente José Eduardo dos Santos justificaria, em qualquer país sério, a imediata demissão de toda a cúpula do Ministério Público. A acção governativa quase se resume à seleção de impostos, cada vez mais impostos, para sobrecarregar os bolsos dos desafortunados angolenses. É hora de agir. Hora de afastar a maribondagem. O país não pode continuar a ser um paraíso para os marimbondos. A inexplicável  sobrevivência política do ministro das Tecnologias ao escândalo do concurso para o quarto operador da telefonia celular por certo que encorajou os restantes marimbondos de que continuamos a viver no reino da impunidade. É preciso dizer-lhes, por via de actos concretos, que acabou-se a brincadeira. 

Um dos arautos do faraónico projecto que deveria ser erigido na Chicala II, o ministro da Construção e Obras Públicas reagiu, há dias, com indisfarçável acidez à reacção negativa da população. Furibundo, Manuel Tavares de Almeida disse, a incrédulos jornalistas, que “por em causa o projecto é simplesmente desmobilizar as intenções já manifestadas de investimentos do sector privado nacional e estrangeiro e descredibilizar o país”. Percebe-se a cólera do ministro. Saído do nada, o bairro dos ministérios preencheria todos os requisitos de uma empreitada decidida com o único propósito de drenar dinheiro público em alguns bolsos. Agora que o projecto foi travado, Manuel Tavares incluirá o Presidente da República entre aqueles que desmobilizam “as intenções já manifestadas de investimentos do sector privado nacional e estrangeiro e descredibilizam o país”

De resto, se os competentes serviços de inteligência do País fizessem o seu trabalho de rastreamento, seguramente o Presidente João Lourenço teria sido poupado de muitos marimbondos.  

A unânime rejeição da sociedade civil e, nomeadamente a do jornalista e investigador Rafael Marques, combinada com a sensatez e a humildade do Presidente da República abortaram o golpe dos marimbondos. Mas se continuarem entrincheirados nos seus postos, não tarda reganharão forças para outras e mais ardilosas armadilhas. Persistir nessa gente é o mesmo que passar um atestado de confiabilidade a víbora. Ou confiar à raposa a guarda do galinheiro.

A decisão do Presidente é merecedora do melhor e sonoro aplauso popular.