Covid, covidamento, covidámedo

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A mais notável e premente transformação civilizacional imposta pelo Covid-19 à sociedade contemporânea é o desconcerto da planificação metódica. Os jogos olímpicos foram adiados, as ligas de futebol interrompidas, projectos bélicos adiados e, o que é mais problemático, etapas de produção e lançamento de produtos industriais ficam alterados. Na Bélgica, houve um desperdício de toneladas de flores, deitadas fora. Uma grande consequência do confinamento social e da fuga aos afectos tácteis imposto pelo Covid é a premência da força interactiva da Internet, a outra mão invisível das carícias à distância.

É isto o Covid. Um vírus sem chapéu na mão, que não nos faz nenhuma vénia à chegada. Chega, entra nas gargantas dos incautos e depois arrasa-lhes os pulmões. E sem ar, ninguém vive. Esta a grande lição natural que o Covid nos ensina: valorizar o ar que respiramos. Combater a poluição atmosférica e o desmatamento.

O Covid é como a visita do chefe de Estado a um hospital. No dia da visita, as camas estão limpas, com lençóis a cheirar a máquina de lavar, o pessoal médico e para-médico todo ele perfilado de batas impecáveis, que maravilha de hospital nós temos em Angola. E então nos perguntamos: porque é que o Covid não fica já aqui connosco? Pela primeira vez, o Executivo pensou de verdade na fome dos que só vivem da zunga diária, pela primeira vez pensou em levar água de cisterna aos bairros (já que a água e a luz são os grandes mitos da nossa governação, ao ponto de parecer que este sector é possível ser gerido apenas pelas eternas cisternas e geradores e pelo insustentável discurso do ministro da Energia e Águas), pela primeira vez em 45 anos, o Governo foi obrigado a pensar povo. Graças ao Covid.

Mas não nos iludamos. A proclamação do estado de emergência, as medidas sociais e toda a panóplia de medidas sanitárias só aconteceram porque, pela primeira vez na vida angolana, os dirigentes estão impedidos por lei de irem se tratar lá fora. Pela primeira vez na vida angolana, os dirigentes estão aqui connosco, a respirar o mesmo vírus, sujeitos à infecção. Doutro modo, não teríamos tal preocupação com os desvalidos. Sempre este Executivo se distanciou do Povo, priorizando os recursos para a Defesa e Segurança, mesmo que tivesse saído da boca do segundo presidente do MPLA a palavra: “O mais importante é resolver os problemas do Povo”.

Do Covid deriva o covidamento. Cada um, cada família remetida a um isolamento imposto por uma lei, como mandam as regras do Estado de Direito. Cada um de nós não se isola só dos outros. Isola-se em si mesmo. Começamos a pensar nas coisas todas que acumulámos durante uma vida. Carros, roupas, dinheiro no banco, bens que não afectam directamente a nossa sobrevivência primária, as viagens de luxo, o pecado da gula que obriga os nossos irmãos, mais novos e mais velhos, a vasculhar os contentores de lixo, enquanto exibimos uma barriga proeminente, e principalmente os ódios, as raivas, os ressentimentos duradoiros, com realce para os ressentimentos políticos que atrasaram a felicidade dos angolanos. E aqui confinados ao covidamento alguns perguntarão: para que nos serve tudo isso? Como arejar a nossa vida, a nossa sociedade, para que o sofrimento das massas não seja tão visível, tão “normal” em tempos de rotina e agora se manifeste tão anormal e perturbador?

A imposição do estado de emergência é um fenómeno natural. É de elogiar. Proclamado no tempo certo e na medida do possível num país que não produz uma única vacina nem sequer uma lâmina de barbear ou uma agulha de coser, que não tem pesquisadores nas academias, e que tem milhões de cidadãos e viver em condições de anti-covidamento estrutural. Em hipótese alguma, uma família monoparental a viver num anexo de um quarto alugado por 5 mil kwanzas, num quintal do Sambizanga, vai conseguir cumprir com as normas impostas pelo estado de emergência. O presidente da República sabe disto, os ministros sabem disto, os deputados também, a própria mãe de família sabe que isso é uma utopia, por isso é que a polícia nem faz aparição ali na Luanda profunda. Existe a lei e existe a realidade forjada durante os últimos 18 anos de paz que nenhum dirigente teve a coragem de assumir e reverter drasticamente, antes que o Covid surgisse na China. É ver como a tónica principal do discurso estadual, desde 2017, se insira na luta contra a corrupção e não tenha sequer utilizado a palavra zungueira, primeiro alvo da operação transparência aqui em Luanda.

A terceira palavra nova derivada do Covid é o covidámedo. O medo de uma propagação comunitária do animal unicelular que possa atingir o grupo dominante e fazer uma coisa que nem os dissidentes, nem os revus, nem as vozes críticas do jornalismo, tão pouco a oposição armada, conseguiram, ao longo destes 45 anos: desestabilizar e até mesmo, destronar o poder imposto pela pseudo-legitimidade da luta armada. Ou até instaurar o caos social. Este é o medo real mais pomposo e generalizado que afecta não só a grande burguesia, mas toda a população.

Aqui em Angola, onde pouco se produz no sector industrial e quase tudo se importa, surge o receio de a indústria externa, de onde nos vem a carne, os detergentes, as peças automóveis e a manteiga e o arroz, não ter capacidade de nos abastecer. Contudo, a esperança ainda e sempre é maior que o medo. Já há a esperança de uma vacina no ar, para daqui a três ou seis meses. As economias mais poderosas esperam relançar a produção e – para quê nos enganarmos? – aqui em Angola, as coisas nem sequer chegaram a parar conforme previa a ordem assinada por Sua Exa. Presidente João Lourenço. A economia informal nunca parou. Se tivesse parado, o povo morria de fome. Portanto, por mais que elogiem as medidas impostas legalmente e a acção emergencial do Governo, o que nos está a salvar é mesmo o ar quente que respiramos, os mais de trinta graus centígrados à sombra é que parecem ser o grande milagre, o grande anjo guardião dos angolanos. De todos nós. Multimilionários, ricos, pequeno-burgueses, intelectuais proletários, camponeses, polícias, militares, todos. E é por isso que já é altura de nos pensarmos de maneira diferente, anti-partidária, ressentida com os anos passados, uns a comer e outros a vegetar.

Acima de tudo, o Covid e as suas derivações morfológicas vieram demonstrar que os tempos são outros, vieram nos ensinar que a mentira tem pernas curtas e que é preciso, de uma vez por todas, colocar limites à imoralidade política do Estado, a favor de nova forma de unidade nacional, assente no respeito pela vida humana de todos e qualquer um de nós. Uma unidade verdadeira que saia para fora dos ditames do mero discurso para boi adormecer e do mito político.