Descobertas indeléveis e angustiantes em Meio à Pandemia

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(A propósito dos juízes e as medidas decorrentes do estado de emergência)

É lugar-comum que as dificuldades, as aflições têm, as mais das vezes, o condão de gerar genialidades, fazendo com que mentes comuns se sublimem; de produzir soluções, que até então se afiguravam uma impossibilidade lógica; de fazer avultar pequenos gestos, por se tornarem em verdadeiras tábuas de salvação; de reduzir situações sobrevalorizadas, como a religião, ao seu real e simbólico valor, porque os entes que cria e terapias que prega cedem, se inutilizam, ante às provações como as covídicas; e o condão de nos levar a descobrir facetas individuais que, sendo privativas a um grupo selecto, os faz guindar à condição de virtualidades humanas. Logo, incompatíveis com rasgos caracterizantes de meros mortais.

Desenvolvendo um pouco mais essa última descoberta, isto é, circunscrita ao novo homem, daremos de caras com as suas excepcionais vestimentas, decorrentes de elevadíssimas funções de Estado. Estamos a falar dos magistrados judiciais, entenda-se, juízes.

Eis que por mais um azar da Humanidade, uma pandemia, a COVID-19, resolveu irromper no nosso seio, desta, no tempo em que vivemos, com um empanicante rasto de mortes e um desesperante número de acamados, que (ainda) sem a devida medicação, aguarda piamente que a fatalidade não ocorra. E face à virulência do bicho papão, o corona, os Estados (o nosso incluído) avançaram para medidas sanitárias e de securidade para a prevenção e enfrentamento ao enorme problema, pelo que, não podia ser diferente, as medidas circunstancialmente necessárias acabariam por bulir, mas prevalecendo sobre os meios normais e especiais de protecção de alguns indivíduos, em razão das funções desempenhadas no aparelho do Estado.

O que parecia certo e correcto veio a constituir-se num pomo de discórdia, numa autêntica batalha (retórico – teórica) campal, em que os juízes, soltando as garras, amiúde escondidas, se corporizaram a ponto de se proclamarem entes supraestaduais e, mais do que isso, entes sobre-humanos. Ao que, na contagem de espingardas, perdas e danos, na vigência das encarniçadas refregas, nos conduziram aos seguintes dados conclusivos históricos:

1.    Mal anda aquele que pensa que os juízes são simples mortais à semelhança de nós todos. Na verdade, são um espécimen de raríssimas virtudes, que vão da imunidade a doenças à intangibilidade pela morte, passando pela insusceptibilidade de transmissão de vírus. Por isso, condenam qualquer poder soberano paralelo, maxime o Executivo, por todo o exercício de salvaguarda das suas vidas e inclusive as cercas sanitárias que ergam contra si e sua sacrossanta liberdade de circulação. E é aí que eles questionam o que os agentes de autoridade (policial) e as gentes do Executivo fazem nas ruas e em actividades! Preferindo esquecer que há um poder de Estado (Executivo) incumbido de executar, regulamentar e fazer aplicar as determinações de todos outros poderes.

2.    Desengane-se quem acredita que os juízes são juristas, tanto quanto os demais que estudaram Direito. Em bom rigor, eles são juristas e juízes congénitos, uma vez que já nasceram assim, tendo passado apenas por um período de amnésia momentânea. E que as escolas de formação jurídica e judiciária serviram/servem apenas de instrumentos para sair da tal amnésia. Portanto, mais ninguém se deve arrogar a conhecedor e intérprete do Direito, a não ser eles, os juízes. Aliás, o erro judiciário não existe, as suas sentenças/acórdãos são textos inquestionáveis e que se virmos algum juiz a conflituar com as normas jurídicas e normas da língua veicular, o problema não é dele, mas nosso, de audição e percepção.

3.    Cuidado ao interpelar um juiz numa rua ou estando recolhido nos seus ofícios, pois será confrontado com a indicação de estar a praticar um acto inconstitucional, porquanto o seu direito ao sossego e à tranquilidade tem consagração constitucional. Por conseguinte, para que fique claro, de uma vez e por todas, é ilegal toda e qualquer abordagem para que um juiz tome posições sobre casos concretos que lhe sejam presentes, por se tratar de um gesto despiciendo. Ele se basta com a sua omnisciência e conhecimentos que tem sobre a vida, os homens e suas condutas desviantes.

Enfim, foi preciso que ocorresse uma doença, de dimensão pandémica, para nós outros descobrirmos que os juízes são, afinal, o último reduto de um Estados de Direito, daí que devem ser intocáveis a todo o tempo e lugar; a reserva inexpugnável das qualidades humanas; a quinta-essência dos juristas; a fonte inesgotável de feitos e actos puros. Em suma, encaremo-los, doravante, como o resumo, o repositório dos dogmas da nossa existência terrena. Alguém falou em livros sagrados?! Temos dito!

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É licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto desde 2006. Exerce docência na Faculdade de Direito da Universidade Metodista de Angola, desde o ano de 2007. Tem formação média docente pelo Instituto Médio Normal de Educação do Sumbe, com primeiras actividades docentes realizadas na escola do ensino Geral Njinga Mbandi, em Luanda, de 2004 a 2007. É funcionário sénior da Provedoria de Justiça, desde o ano de 2007.