Desenganemo-nos: não é de um lobo solitário o “uivo” que vem ecoando nas redes sociais pregando a urgência de uma revisão constitucional que, entre outras alterações, estenda para três os mandatos do Presidente da República.
António Mussumari, jornalista e director do Gabinete de Comunicação Institucional do Governo da Lunda Norte, foi quem lançou o debate nas redes sociais.
Embora advirta, no final dos textos, que as suas opiniões não vinculam quer o Governo quanto o Comité Provincial do MPLA da Lunda Norte, de que é presumível membro, Mussumari não iria a campo, sozinho, com tão pesada cruz.
Moldado nos rígidos parâmetros do centralismo democrático, a que continua fiel, no MPLA iniciativas individuais dos seus militantes não prosperam.
Em recente entrevista ao O País, o deputado Monteiro Kapunga, membro do Comité Central do MPLA, mostrou bastante simpatia à tese trazida a debate público pelo seu colega da Lunda Norte.
Portanto, há todas as razões para se crer que a proposta de alteração constitucional lançada por Mussumari não é individual; foi gizada num laboratório que, a esta hora, já estará a avaliar os ganhos e perdas do primeiro mandato presidencial de João Lourenço, faltando pouco mais de dois anos para chegar ao fim.
António Mussumari atem-se particularmente ao artigo 113 da Constituição. Na sua actual redacção, o n. 1 do referido artigo estabelece que o “mandato do Presidente da República tem a duração de cinco anos, inicia com a tomada de posse e termina com a posse do novo Presidente eleito”. No seu n.2, está estabelecido que “cada cidadão pode exercer até dois mandatos como Presidente da República”.
Na “sua” iniciativa, Mussumari quer um consulado presidencial alargado para três mandatos de 5 anos cada ou, em alternativa, dois mandatos de 7 anos cada. No primeiro caso e se cumprisse os três mandatos, o Presidente da República só abandonaria o palácio ao fim de longos 15 anos. No segundo cenário, se fosse bem-sucedido, o Presidente da República cessaria funções ao cabo de 14 anos.
O militante do MPLA sustenta o alargamento do mandato presidencial com o argumento de que tal “poderia permitir a quem estivesse nas vestes de Presidente da República implementar as suas políticas de governação com alguma estabilidade com vista a resolver os problemas da população”.
Segundo ele, “não é possível em dez anos (que corresponde a dois mandatos) resolver todos os problemas do país, por que, muitas vezes, os factores externos podem criar instabilidade governativa, daí no meu entender haver a necessidade de acrescer mais anos de governação para quem estiver ao leme do país”.
António Mussumari não o diz, mas parece óbvio que a sua proposta visa, essencialmente, alargar o “tempo de vida” do mandato do actual Presidente da República. Portanto, seria uma alteração cirúrgica com um objetivo concreto.
Antes de quaisquer outras considerações, é conveniente chamar à atenção que a Constituição em vigor fixa em cinco anos o mandato do Presidente da República.
Ao pleitear, já, um terceiro mandato para o actual Presidente da República, Mussumari toma um segundo mandato de João Lourenço como favas contadas.
Ora, não é bem isso o que sugerem os factos.
É indiscutível que, nas circunstanciais actuais, um candidato apoiado pelo MPLA tem mais hipóteses de vitória do que qualquer adversário.
Mas quem anda aqui de olhos bem abertos, livres de qualquer colírio de fanatismo, percebe que o segundo mandato não cairá no colo de João Lourenço com muita facilidade.
A favor do actual Presidente da República conjugam-se muitos factores positivos.
Com João Lourenço substantivos como corrupção, nepotismo, bajulação entraram nos ouvidos da plebe e passaram a estar efectivamente associados a práticas repulsivas; João Lourenço “partiu os dentes” a alguns intocáveis do passado; apesar de muitos tropeços, a generalidade dos angolanos identifica em João Lourenço vontade e determinação de dar outra qualidade de vida aos cidadãos. Com João Lourenço foram vergados alguns monopólios que tornavam o país no jardim de infância de uns poucos imberbes. Com João Lourenço são inegáveis as conquistas dos angolanos em domínios como liberdade de imprensa e de expressão.
Mas serão esses ganhos suficientes para dar como garantido o segundo mandato de João Lourenço?Quando olham para o retrovisor, os próprios estrategas do MPLA constatam falhas e insuficiências que podem problematizar o pretendido desiderato.
João Lourenço comprometeu-se a dar luta sem tréguas à corrupção, mas, paradoxalmente, não apenas se fez rodear de muitos dos piores corruptos como permite que alguns deles partilhem a sua mesa, lhe estendam a cama e até durmam debaixo dela.
João Lourenço prometeu combate cerrado ao nepotismo, mas, paradoxalmente, reuniu no seu staff as mesmas pessoas que construíram o edifício jurídico que permitiu que José Eduardo dos Santos e sua parentela fizessem de Angola uma simples extensão dos seus quintais.
O combate à corrupção está diluído em insanáveis contradições e conflitos: muitos dos que apontam os alvos ao Presidente da República têm telhados de vidro.
Por exemplo, Rui Ferreira, que, na posse de João Lourenço o encorajou a combater a corrupção, ficou pelo caminho, atropelado por práticas menos republicanas.
“A partir de hoje, abre-se a seus pés e para os próximos cinco anos, uma via expressa para fazer o que prometeu aos angolanos. Faça-o, senhor presidente. Corrija o que está mal. Melhore o que está mal. Combata a corrupção. Fortaleça o Estado democrático e de direito. Diversifique a economia”, exortou aquele que era suposto vir a ser um dos principais esteios do novo Presidente da República na luta contra a corrupção e outros males associados. Mas em Outubro de 2019, já nas vestes de juiz presidente do Tribunal Supremo, Rui Ferreira renunciou ao cargo depois de ver o seu nome repetidamente associado a práticas cujo combate recomendou a João Lourenço.
Ver o nome do titular da mais alta corte do país envolvido em práticas normalmente só compatíveis com bandidos e delinquentes foi um duro golpe quanto à luta contra a corrupção quanto ao próprio João Lourenço que confiou tão distinta função a Rui Ferreira.
João Lourenço rescindiu contratos envolvendo obras bilionários que o seu antecessor tinha doado à Isabel dos Santos; João Lourenço exige da filha do seu antecessor a devolução de várias centenas de milhões de dólares. Mas Manuel Vicente, Kopelipa e outros que mergulharam despudorada e abertamente no pote do mel público continuam aí, intocáveis, sem nada a devolver aos cofres públicos.
O Governo prepara um ambicioso programa de privatização de empresas públicas e os potenciais compradores dessas unidades são precisamente os gângsteres que saquearam os cofres públicos até ao limite. Entre os quais os já citados.
João Lourenço prometeu disciplinar a despesa pública. Mas de há uns tempos a esta parte a onda despesista do Governo está descontrolada. Sem ter a mais leve ideia do que fazer com elas, o Governo embarcou na compra de novas aeronaves para a TAAG; a Assembleia Nacional gasta anualmente milhões e milhões de kwanzas para garantir que os traseiros dos seus deputados sejam limpos pelo papel higiénico mais macio; no Kwanza Sul, o governo local prefere arrendar carros a compra-los, com o que gastaria infinitamente muito menos; o próprio Presidente da República multiplica-se em autorizações implicando o Estado em despesas com aquisições de bens imobiliários cuja utilidade é discutível. E fá-lo ao abrigo do instituto da contratação simplificada, um ardil muito ao gosto de quem quer ludibriar o concurso público.
O Presidente João Lourenço promete aos angolanos uma vida assente em novos paradigmas, mas insiste em caminhar com muitos dos “artistas” que afundaram o país; a caminho do terceiro ano, João Lourenço continua a ter falhas clamorosas na seleção das pessoas que lhe poderiam ajudar a refinar as decisões para chegar onde quer chegar; a caminho do seu terceiro ano, João Lourenço continua amarrado à convicção de que fora do MPLA não há quadros que possam servir o país com competência, honestidade e lealdade; apesar de todos os meios de observação que tem, João Lourenço continua a não perceber que nem todos os membros da primeira linha do seu partido o acompanham na luta contra os males que fizeram de Angola a caricatura de país que é.
Enfim, há alguma ingenuidade na leitura de que João Lourenço já não tem de se preocupar com o segundo mandato seguindo a presunção de que está garantido. Não está nada!
A ligeireza com que Mussumari toma como assunto arrumado o segundo mandato não considera o maior dos adversários de João Lourenço. Para chegar ao II mandato, João Lourenço não vai ter a morder-lhe os calcanhares apenas os adversários políticos e os seus inimigos internos no MPLA. O maior de todos os seus inimigos é a economia. Nesta frente, tudo conspirou contra ele.
A meio do seu primeiro mandato, Joao Lourenço já não tem a menor possibilidade de realizar, sequer, um quarto dos propósitos inscritos no Manifesto Eleitoral do MPLA para o período 2017-2020; hoje, o MPLA tem como metas inalcançáveis o “Desenvolvimento sustentável com inclusão económica e social e redução das desigualdades; o “Desenvolvimento humano e bem-estar dos angolanos”; a “Edificação de uma economia diversificada, competitiva, inclusiva e sustentável” ;ou, ainda, a “Expansão do capital humano e criação de oportunidades de emprego qualificado e remunerador para os angolanos”.
A pandemia da Covid, que tem vindo a traduzir-se na falência das empresas, no aumento do desemprego, da fome e da miséria, no endividamento interno e externo, é o golpe de misericórdia que deitou por terra, de maneira inapelável, todas as veleidades de Governo de João Lourenço no domínio económico e social. E contra isso não há volta a dar.
Subestimar ou menosprezar o peso da economia nas próximas opções eleitorais dos angolanos é ter as pernas a levitar. A equipa económica escolhida por João Lourenço para tirar o país do sufoco em que se encontra já deu o que (não) tinha a dar. Não tem uma única carta na manga. Daquele ressequido limão já não vai ser possível extrair uma única gota de sumo.
Por outro lado, um terceiro mandato não seria, seguramente, uma unanimidade entre os angolanos, pelo menos os mais esclarecidos.
Há ponderáveis factores que desaconselham Constituições feitas à medida deste ou daquele ocupante circunstancial do palácio presidencial.
A actual Constituição, estruturada toda ela para acomodar as ambições e até caprichos de José Eduardo dos Santos, é exemplo do erro que não deve ser repetido. Em grande medida, Angola tornou-se na república das bananas que é hoje por causa não apenas dos excessivos poderes que a Constituição atribui ao Presidente da República, mas também porque José Eduardo dos Santos deixou-se convencer que o longo tempo que levava fazia do poder uma propriedade sua e dos seus filhos.
Em pleno século XIX, patrocinar uma Constituição que estenda os mandatos presidenciais é incorporar Angola no pouco recomendável rol de países terceiro-mundistas que mantém o velho e mau hábito de trocar as regras no decurso do jogo.
Em 2017, quando José Eduardo dos Santos apostou nele para disputar a Presidência da República, João Lourenço sabia que a Constituição fixa em cinco anos o mandato presidencial. Sabia, também, que “cada cidadão pode exercer até dois mandatos como Presidente da República”.
Em definitivo: não é a Constituição de Angola que tem de ser ajustada às metas de João Lourenço; é João Lourenço que tem de ajustar o seu programa ao horizonte temporal estabelecido na Constituição.
Não é a Constituição de Angola que tem de ser ajustada às metas de João Lourenço; é João Lourenço que tem de ajustar o seu programa ao horizonte temporal estabelecido na Constituição