Foi numa Luanda iluminada com candeeiros públicos abastecidos com óleo de amendoim que a 18 de Maio de 1930 se disputou o primeiro jogo de basquetebol de que há registo na história de Angola. Defrontaram-se então as equipas da Associação Académica do Liceu Salvador Correia e do Sporting Clube de Luanda, saindo vencedores pelos “verde e brancos” pela marca de 8-5, num campo pelado e com uma bola de… futebol!
Há quase um século, em 1930, Luanda era uma urbe pequena, com os seus pouco mais de 50.500 habitantes. Os limites da cidade, que crescera ao redor da Fortaleza de São Miguel, saíam em semi-círculo da Praia do Bispo até mais ou menos a Igreja do Carmo. O bairro dos Kipakas, onde na década de 1960 seria erguido o Estádio Moura Carvalho, propriedade do Clube Ferroviário de Angola, já era considerado arrabaldes, o bairro da Ingombotas era periferia e o Kinaxixe era “mato”.
Nessa altura, o poder político-administrativo estava instalado na colina de São José, onde foi erguido o vetusto Palácio do Governo, que já foi Palácio do Povo e agora é Palácio Presidencial. A cidade capital era tão pequena que, sem luz eléctrica, funcionários da Câmara Municipal de Luanda davam conta, sem problemas de maior, do abastecimento com óleo de amendoim dos candeeiros públicos para a iluminação nocturna! Afinal, quase tudo funcionava na zona baixa do burgo.
Luanda tinha então uma biblioteca pública, a da Câmara Municipal, e um Liceu, o Salvador Correia, fundado em 1919 pelo governador-geral de Angola Filomeno da Câmara Melo Cabral, através da Portaria n.º 51. Porém tinha muito clubes, os quais “acotovelavam-se” no bairro dos Coqueiros, próximo do recinto que em 1947 iria ganhar estatuto de estádio. Bem próximo achava-se o stadium do Ferrovia Atlético Club, onde no início do Séc. XX a marinhagem de cruzadores ingleses e de outras nacionalidades se entregada à disputa de renhidas partidas de futebol com grupos locais.
Criado à imagem e semelhança da Universidade de Coimbra, o “Salvador Correia” tinha também a sua Associação Académica. E mesmo não dispondo de ginásio – só o teve em 1942 nas novas instalações – desde o primeiro ano lectivo que a disciplina de Educação Física constava do currículo escolar. Isto, a despeito de só em 1929 a instituição ter adoptar o programa curricular dos liceus da Metrópole. Geralmente militares graduados e formados no ramo se ocupavam dessa cadeira.

Em 1930 era instrutor de Educação Física o tenente da Armada lusitana Daniel Pina Cabral, um apaixonado pelo basquetebol, modalidade cujos rudimentos ensinava aos seus alunos nas horas de ócio. Além do popular foot-ball, Luanda já havia sedimentado os seus hábitos desportivos. Praticava natação, tennis, remo, hockey em campo, ginástica e até chegou a aventurar-seno cricket na esgrima, todas modalidades very British. Na época, o desporto era para as classes sociais mais favorecidas, como acontecia na “Velha Albion”, onde a nobreza era a principal praticante de desportos. Nessa altura, a imprensa grafava a designação das modalidades desportivas em inglês.
Da novel modalidade surgida poucas décadas antes nos Estados Unidos da América poucos queriam saber, com exceção de umas escassas pessoas. A maioria dos sportmenda urbe atribuía à “bola ao cesto” malefícios diversos além de lhe classificarem como imprópria para ser jogada entre os trópicos. Só Daniel Pina Cabral e seus seguidores pensavam o contrário, argumentando que o basquetebol era recomendável para quem necessitasse de uma boa preparação para as outras modalidades.
A ocasião para rebater as críticas ao basquetebol surgiu e o instrutor do Liceu não a desperdiçou. Era a celebração do 10.º aniversário do Sporting Clube de Luanda que iria ser assinalado a 15 de Agosto de 1930. O ensejo foi aproveitado pelo oficial da Armada para instar o emblema “leonino” a inserir uma partida de basquetebol nas festividades do clube que haviam começado no princípio do ano e terminariam no mês do aniversário. O repto foi aceite, ficando o histórico embate foi agendado para 18 de Maio de 1930 no stadiumdo Ferrovia Atlético Club.
Naquele ensolarado domingo, foram vários os curiosos que acorreram ao mais badalado recinto desportivo da urbe para ver como se jogava o basquetebol. A novidade mereceu referência no principal publica da época, A Província de Angola, antecessora do Jornal de Angola. Na sua página desportiva de 16 de Maio de 1930, o matutino anunciava a boa-nova: “Segundo nos consta, deve realisar-se deste belo sport entre um team da Associação Académica e outro do Sporting Club de Luanda para a disputa de um pequeno troféu com o nome de Bronze Pina Cabral, o introdutor do basket em Luanda”, lê-se no texto que mais adiante augura triunfo dos “estudantes”, em razão de ser “a Associação Académica, possuidora dum bom team, com vastos recursos técnicos e atléticos, fará, certamente, uma demonstração forte e cheia de emoção e os rapazes do Sporting vão esforçar-se para honrar as gloriosas cores do seu club opondo-lhe uma tenaz defeza”.
Só que, as previsões do diário saíram furadas e o Sporting levou a melhor por 8-5, placardcuja magreza extrema encontra explicação no facto de a partida ter sido jogada no pelado do stadiumdo Ferrovia Atlético Club e com… bola de futebol, cujo manuseio e controlo é bastante difícil. Mais: não havia ainda a regra do tempo limite de 30 segundos (depois passou a 24) para atacar a cesta, o que permitia que os jogadores escondessema bola o tempo que quisessem. Era, pois, difícil o alcance de um resultado mais condizente com uma partida de basquetebol.
Ainda assim, na sua edição de 20 de Maio de 1930 A Província de Angolaconsiderou o jogo “animado” (espante-se!) e argumentou que “a Associação Académica, embora batida, mostrou mais conhecimentos que o seu adversário. Sentia a diferença do campo e apoderou-se dum grande nervosismo quando via o Sporting marcar quatro pontos em poucos minutos”. Também arguiu que “um scoremais elevado de parte a parte teria defendido melhor a marcha do encontro”.

O desaire dos “estudantes” também podia encontrar explicação pelo facto de não se terem preparado convenientemente, visto que estavam no início do ano lectivo, que então ia de Maio a Fevereiro e, muito provavelmente, durante as férias não treinaram com a necessária regularidade, que naqueles tempos significava pelo menos uma vez por semana. É que, a actividade da Associação Académica fazia-se sentir essencialmente durante o período de aulas e nos recessos os alunos entregavam-se a outras ocupações ou viajavam para a Metrópole ou para o interior da Província, além de se dedicarem também ao futebol, que quase todo o mundo praticava e tinha como primeira opção desportiva.
Naquele dia, sob arbitragem de J. Pacheco, fizeram história pelo Sporting José Mendes Martins, Artur Bento da Costa, António da Costa Carvalho, Pimentel Teixeira e José Alves Redol, ao passo que pela Associação Académica alinharam Azevedo Atanaes, Pinto, Fernando Pato, Sebastião Pombal e Amadeu de Menezes. Curiosamente muitos desses rostos eram figuras proeminentes da sociedade luandense. Por exemplo, José Alves Redol tornou-se um vulto das Letras na sua época (fundou e dirigiu o jornal metropolitano Goal, editado no Ribatejo), Bento da Costa era médico-veterinário, António Carvalho chegou a director de Fazenda e Sebastião Pombal foi um comerciante bastante conhecido na urbe capitalina de então. Foi assim que tudo começou no basquetebol de Angola.
Em 1930 só houve mais um desafio de basquetebol e mais um emblema, o Clube Atlético de Luanda, abriu as suas portas à novel modalidade. No ano seguinte Benguela deixou-se seduzir pela modalidade. Mas na capital o quarto competidor, o Sport Lisboa e Luanda (depois designado Sport Luanda e Benfica) só surgiu quase uma década depois do jogo de estreia. Tudo porque era grande a relutância dos clubes em se deixarem enlear pela “bola ao cesto”. De sorte que o primeiro campeonato Distrital de Luanda ocorreu apenas em 1942 e o “Provincial” de Angola demorou quase duas décadas para disputar a sua edição inaugural em 1960, ganha pelo Sporting de Benguela. Foi, pois, longo e sinuoso o caminho que o basquetebol angolano trilhou até chegar à hegemonia no continente africano.
(*) Adaptado do livro Caminhos do Basquetebol Angolano (1930-1975) – Vol. I, da autoria de Silva Candembo e com lançamento para breve.