O ocaso do vice-presidente

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Na história política angolana não há alguém que tivesse atingido um cargo tão relevante e vivesse confinado, como é o caso do vice-presidente, Bornito de Sousa.
Se olharmos à volta, provavelmente não encontraremos ninguém que esteja tão perto da luz, mas que, simultaneamente, continue na penumbra. Faz lembrar o que os mexicanos, impedidos de entrar nos EUA como gostariam, dizem dos vizinhos do Sul: “cerca de America, lejos de Dios!”
Quando fez de “Nandó” primeiro-ministro, ao fim de algum tempo José Eduardo dos Santos aliviou as amarras e deu-lhe (algum) trabalho.
Nandó começou com trabalho de faz de conta, mas era trabalho. Excedeu-se por exemplo na ida aos jogos olímpicos de Atenas. Deixou-se ficar lá mais tempo do que o chefe dele desejaria.
José Eduardo dos Santos teve a mesma atitude com Paulo Kassoma e com Manuel Vicente, que o serviram como primeiro-ministro e vice-presidente. Os dois, mais o segundo que o primeiro, tiveram sempre coisas para fazer e relatórios para apresentar.
Lá fora, Donald Trump, o omnipresente presidente dos Estados Unidos, confiou muita coisa ao seu vice-presidente, Mike Pence. É a este que cabe dirigir a “task force” que Trump criou para responder à COVID-19.
Nas duas vezes que o teve como primeiro-ministro, Vladimir Putin, outro que ocupa todo o espaço na Rússia, deu alguma latitude a Dmitry Medvedev.
Nelson Mandela – e ninguém foi maior do que ele – nunca empurrou Thabo Mbeki, seu vice, para detrás da cortina.
O caso de Bornito de Sousa é diferente.
O vice-presidente, já é um caso que merece ser estudado.
Quem um dia se entregar a escrever a história do mandato do Presidente João Lourenço terá que ver Bornito de Sousa não só como um caso, mas já como um ocaso.
Apesar da imensidão de problemas que Angola vive, a Bornito de Sousa não é confiada nada para se ocupar. Vive hoje a sua terceira fase de confinamento. A primeira começou com a sua chegada à vice-presidência. Ao fim de um ano de ócio e ostracismo, frustrado, fez constar a alguns amigos influentes que não queria fazer parte de quaisquer conjecturas para um segundo mandato.
João Lourenço, que, definitivamente, não o tem em vista para essas contas, viu poupado o trabalho de ter que lhe dizer (na cara) que deve pensar noutra vida depois do fim deste mandato.

Quem um dia se entregar a escrever a história do mandato do Presidente João Lourenço terá que ver Bornito de Sousa
não só como um caso, mas já como um ocaso


A segunda fase do confinamento, quiçá a mais humilhante, foi quando o PR fez de Carolina Cerqueira ministra de Estado para a Área Social. Essa promoção deitou abaixo a ideia, que até faz muito sentido, de que o vice-presidente se ocupava dessa área. Nessa altura, Bornito de Sousa, um dos primeiros políticos a aderir às redes sociais, já tinha transformado a interação com internautas numa ocupação “full-time”. Não tinha literalmente nada para fazer. Foi daí nessa altura que incorreu no infeliz tweet à volta do nascimento do príncipe Archi Harrison, filho do Príncipe Harry e de Megan Markle, duque e duquesa de Sussex, respectivamente.
A natureza das reacções, com piadas e protestos à mistura, seguramente que o levou a pensar que não precisava de ser tão explícito na exibição da sua falta de trabalho.
É certo que Bornito de Sousa precisava de se ocupar com alguma coisa. Ninguém pode, de um dia para o outro, deixar de ter utilidade, sobretudo depois de chegar ao segundo posto da magistratura política do país. Mas a via escolhida para exercitar a mente não foi a melhor. Não tendo nada a fazer na agenda oficial do Executivo, o vice-presidente perdia-se a corrigir erros de português que detectava nas palavras cruzadas do Jornal de Angola, ou a publicar tweets triviais.
Hoje, não se pode dizer que o vice-presidente da República “queima” as 24 horas do dia navegando nas redes sociais, mas, como antes, continua a ser actor e fiscal do que se diz na internet. Só assim se compreende o facto de não lhe ter escapado uma insinuação feita por um não influente que o ligou ao 27 de Maio.
Adiante. Quando começou a vigorar o Estado de Emergência, Bornito de Sousa passou de politicamente confinado a fisicamente confinado. É quase seguro que não teve dificuldades de se adaptar.

Bornito de Sousa e João Lourenço: falta sintonia a esta dupla


A relação de João Lourenço com Bornito de Sousa teve sempre muitas zonas cinzentas. É público que entre ambos houve – ou ainda há – maus fígados antigos. Enquanto chefe de bancada parlamentar do MPLA, Bornito de Sousa passou para o secretário-geral, João Lourenço, o regabofe que aconteceu à volta da exclusão de Moco, Lopo e França Van-Dúnem, do Congresso de 2008. E nesse Congresso João Lourenço acabou sendo apeado. É sabido, também, que não foi João Lourenço que escolheu Bornito de Sousa como seu vice. Nessa matéria, ele não teve opinião. Bornito de Sousa foi-lhe imposto por José Eduardo dos Santos.
À data dono e senhor disto tudo, DSDT, José Eduardo dos Santos acreditava que colocado na vice-presidência da República, Bornito de Sousa seria o seu representante. Provavelmente, o então DSDT esperava que Bornito desempenhasse junto de João Lourenço o papel de chato, empata, fusível ou dissuasor.
Mas, não tendo, sequer, permitido que o próprio José Eduardo dos Santos usasse, a partir do Kremlin, o controlo remoto, João Lourenço não teve dificuldades em acantonar Bornito de Sousa.

À data dono e senhor disto tudo, DSDT, José Eduardo dos Santos acreditava que colocado na vice-presidência da República, Bornito de Sousa seria o seu representante. Esperava que Bornito desempenhasse junto de João Lourenço o papel de chato, empata, fusível ou dissuasor


Embora se saiba que João Lourenço e Bornito de Sousa não morrem de amores um pelo outro, o défice de ciência que jaz no MPLA e no Governo impõe as seguintes perguntas: faz algum sentido “inutilizar” o vice-presidente? O Presidente da República não ganharia muito mais se envolvesse, na formulação das suas decisões, uma pessoa com a tarimba de Bornito de Sousa? Bornito de Sousa foi presidente da Comissão Constitucional, que produziu a Constituição actualmente em vigor; foi chefe da bancada parlamentar do MPLA e foi ministro da Administração do Território. Uma pessoa com esse background é de deitar fora?
O vice-presidente foi literalmente castrado. O Carmo e a Trindade viriam por aí abaixo se, num exercício de congregação, o vice-presidente da República fosse chamado a emprestar um pouca da vasta ciência que acumulou?
João Lourenço não deveria permitir que a imagem de reformador fique comprometida por decisões que raiam à birra e nem devia dar espaço a que a sua relação com Bornito de Sousa seja apontada pela galera eduardista para o pintarem como desagregador.
Há poucos dias, João Lourenço criou uma comissão para rever os manuais escolares. Era uma boa oportunidade para João Lourenço dar algum trabalho ao vice-presidente da República, quanto mais não fosse para dar maior dignidade institucional a essa comissão. Mas, mostrando, mais uma vez que não precisa do seu vice para nada, João Lourenço confiou a coordenação da referida comissão a Carolina Cerqueira. O que mostra que o Presidente da República está a misturar alhos com bugalhos. Ou seja, eventualmente, João Lourenço estará a permitir que mágoas ou zangas pessoais interfiram na relação institucional.
Bornito de Sousa não será, certamente, uma unanimidade nacional. Com qualquer um de nós, tem defeitos, é tido com esquivo, morde e sopra, mas nenhum deles decorre de má relação com a língua portuguesa. É conhecido o rigor com que lida com a nossa língua oficial.
Por isso mesmo, a coordenação da comissão encarregue de rever os manuais escolares, na generalidade cheios de erros de português, assentaria como uma luva a Bornito de Sousa.