Agostinho Neto: Utopia versus Politopia

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Desde que, há já mais de uma década, nos dedicamos a analisar a poética de Agostinho Neto, destacámos, na obra e na vivência deste autor, dois períodos distintos. O primeiro foi o período da Utopia, realizado plenamente na melhor poesia libertária, engajada e africanista que se produziu na história da Literatura Angolana, que mais tarde seria reunida na obra “Sagrada Esperança” (1945 – 1960).

O segundo período foi o da Politopia, ou seja, da procura da realização da Utopia no templo da Polis, ou seja, do Poder político. Este período é o da participação na direcção do movimento de libertação (MPLA) e, mais tarde, no aparelho de Estado, como Chefe de Estado da RPA (1961 – 1979). Este tempo da Politopia ficou extremado em 1961, por causa da mudança radical de paradigma de actuação, com o salto do estado de prisão para o de dirigente.

Operamos aqui um corte epistemológico radical na análise da vida e obra do Poeta. Tentar reunir os dois momentos da história da vida de A. Neto, como se da mesma consciência se tratasse, é cair num equívoco de enormes proporções, porque não há relação de continuidade entre uma obra inspirada e concretizada na solidão individual e no abstraccionismo do espírito e uma obra inspirada e concretizada na convivência colegial da acção política (luta de libertação e construção do Estado independente), estando o protagonista sentado no topo da pirâmide social. Acontece que, nesta nova conjuntura, impera sempre a essência indelével do Poder, enquanto síntese da Utopia colectiva e démarche impositiva e coactiva do Governo colegial, passível sempre de contradições e fricções dentro do próprio colégio reitor do Poder. 

Entre a Poesia e a Política há uma respiração gemelar. Entre a Poesia e o Poder Político não há solução de continuidade. Por isso é que Pablo Neruda recusou ser presidente do Chile, após o triunfo do seu partido, em 1970. Toda a boa e verdadeira Poesia, como a de Neto, vem de baixo, no seu apelo à consciência humana. Pelo contrário, o Poder sai de cima para baixo, na sua verticalidade coactiva. 

Serve esta pequeno enquadramento biográfico da vida de Agostinho Neto para determinar que toda e qualquer crítica destrutiva à poesia de Agostinho Neto, sem levar em conta a poesia da geração a que pertenceu, nem o estudo comparado com a literatura ocidental e americana conduz-nos a uma certa perplexidade epistemológica. De tantos poetas angolanos que coabitaram no reino da poesia com Agostinho Neto, alguns até mais concretistas e mais prosaicos que A. Neto, porque é que os detractores da obra deste grande poeta, viram-se unilateralmente para a poesia da Sagrada Esperança?

Toda e qualquer crítica destrutiva à poesia de Agostinho Neto, sem levar em conta a poesia da geração a que pertenceu, nem o estudo comparado com a literatura ocidental e americana conduz-nos a uma certa perplexidade epistemológica

Devido à colagem que se tem feito entre o Neto-poeta e o Neto-presidente, não só pelos detractores da sua obra poética, mas até pelos seus defensores, que demonstram um excesso de zelo revolucionário, conducente à partidarização e entronização da Musa, devido à constatada soldadura hermenêutica. O que é facto é que a própria Musa nunca inspirou versos conotados com o poder político. A prová-lo estão estes de Renúncia Impossível: “Podeis continuar com os vossos sistemas/ socialistas ou capitalistas/ que isso não me interessa”. Esta afirmação é a renúncia da ditadura da Guerra Fria e do próprio sistema mundial do imperialismo que impôs em África regimes à sua imagem e semelhança. Devido ao monolitismo ideológico da primeira República, estes versos só seriam publicados após a morte do Poeta.

Portanto, a soldadura hermenêutica do período da Utopia (Poesia e acção revolucionária) e o da Politopia (exercício do Poder político, 1961 – 1979) resulta num equívoco histórico de proporções gigantescas e alarmantes que convém desfazer, para salvar o Poeta exímio da Liberdade, sem deixá-lo confundir-se com o Presidente partidário-governamental, autor de outra obra marcada pela essência predadora e repressiva do Estado e que nada tem a ver com a intimidade solitária da inspiração lírica.