SOBRE A CARTA DO PR À ASSEMBLEIA NACIONAL

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O Presidente da República não promulgou o novo Código Penal e devolveu-o à Assembleia Nacional a quem solicitou a reapreciação de alguns artigos. Os artigos, cuja reapreciação o Presidente da República pediu à Assembleia Nacional, têm a ver, sobretudo, com a penalização de crimes cometidos no exercício de funções públicas. Em carta que enviou ao Parlamento, o Presidente da República manifesta-se inquieto com a perspectiva em que crimes de peculato praticados no exercício de funções públicas são tratados no novo Código Penal. Nesse documento, João Lourenço diz que a “perspectiva apresentada pelo novo Código Penal pode não estar alinhada com a visão actual e transmitir uma mensagem equivocada quanto aos crimes cometidos no exercício de funções públicas”. Correio Angolense convidou o jurista Bangula Quemba para reflectir sobre as inquietações do Presidente da República.

1.Solicitou-me o “Mais Velho” e Jornalista Sénior Graça Campos que redigisse, de forma sintética, o comentário que fiz à Rádio Nacional de Angola, a propósito da carta remetida pelo Presidente da República à Assembleia Nacional em que “solicita a reapreciação de artigos específicos do Código Penal, relacionados, fundamentalmente, com os crimes cometidos no exercício de funções públicas.” Muito grato! Aceitei o pedido com muito gosto, apesar do pouco tempo que me foi concedido.  

2. Primeiro, nota negativa à Assembleia Nacional, pois, por via da carta do Presidente da República, ficou a saber-se que “o Chefe de Estado recebeu, há dias, para promulgação, a lei que aprova o novo Código Penal …”. 

3. A nota é negativa porque o Regimento Interno da Assembleia Nacional, aprovado pela Lei n.º 13/17 de 6 de Julho, no n.º 3 do artigo 225.º dispõe que a “redação final (da lei) efectua-se no prazo que o Plenário ou o Presidente da Assembleia Nacional estabeleça ou, na falta de fixação, no prazo de dez dias”. O “Presidente da República e os Deputados podem reclamar contra inexactidão de qualquer acto legislativo ou documento, até aos 5 dias posteriores ao dia da publicação do texto da redacção final no Diário da Assembleia Nacional ou em folha avulsa” (n.º 1 do artigo 226).

“Para os crimes cometidos no exercícios de funções públicas e crimes económico-financeiros, a transparência na gestão da coisa pública, a cultura de prestação de contas, a educação pelo bem comum, a declaração pública de bens por parte do gestor/agente público antes e depois do exercício das suas funções, são, a meu ver, os melhores instrumentos de política criminal”


4. Não havendo reclamações ou recurso, o prazo máximo para assinatura do texto final pelo Presidente da Assembleia Nacional, no geral, é de 3 dias (als. a), b) do n.º 2 e 3 do artigo 227.º) e terminado este prazo e, consequente, assinatura definitiva, a lei é remetida ao Presidente da República para promulgação.


5. Por seu turno, o Presidente da República promulga as leis da Assembleia Nacional nos 30 dias posteriores à sua recepção (n.º 1 do artigo 124.º da CRA).

6. Resumindo: a Assembleia Nacional remeteu ao Presidente da República o novo Código Penal para promulgação 1 (um) ano e 6 (seis) meses depois da sua aprovação, isto é, a 23 de Janeiro de 2019. Mau exemplo! 

7. Segundo, os crimes cuja reapreciação foi pedida (tráfico de influência, corrupção, participação económica em negócio e outros) inserem-se no Capítulo dos “Crimes Cometidos no Exercício de Funções Públicas e em Prejuízo de Funções Públicas”. Embora, o Presidente da República tenha legitimidade constitucional para o fazer nos termos do artigo 124.º da CRA, salvo o devido respeito e melhor entendimento, não acompanho os fundamentos que a carta apresenta para a reapreciação dos referidos artigos. Para se compreender as razões que levaram o legislador a determinar penalidades “brandas” é importante reflectir 3 (três) aspectos:

iMatriz estruturante do Novo Código Penal e finalidade das penas; iibem jurídico protegido pelos crimes cometidos no exercício de funções públicas e em prejuízo de funções públicas e iiifinalidades de prevenção geral positiva e negativa.

8. No ponto 8, o Relatório de Fundamentação do Novo Código Penal cita a CRA que define “(…) A  República de Angola como um Estado democrático de direito  que tem como âncoras, entre outras, a dignidade da pessoa humana e o respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, consagrando-se nela, expressa ou implicitamente, um conjunto de princípios e valores que enformam a ordem jurídica angolana em geral e a jurídico-penal, em particular; princípios e valores com os quais, mais do que qualquer outro ramo do direito positivo, tem de se conformar o direito penal” e o Novo Código Penal (versão disponível) reza no artigo 40.º (finalidade das penas e das medidas de segurança), n.º 1 que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos essenciais à subsistência da comunidade social e a reintegração do agente na sociedade” e no n.º 2  que “execução da pena de prisão deve orientar-se no sentido da reintegração do recluso na sociedade, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.”

9. Assim, a Dignidade da Pessoa Humana é fundamento e limite do poder punitivo do Estado, o chamado “ius puniendi” e tem de prosseguir as finalidades retro mencionadas quer no plano da aplicação, quer no plano da execução. Em outras palavras, o legislador está obrigado, ainda que seja somente no plano axiológico, quando entende qualificar determinadas condutas como crime e respectivas penalidades, a respeitar a Dignidade da Pessoa Humana e finalidade das penas, como elementos estruturantes. Por isso, tendo em vista o carácter subsidiário e de intervenção mínima do Direito Penal, o legislador constituinte também consagrou no artigo 57.º os princípios da proporcionalidade, necessidade e adequação como sendo “orientadores” para a determinação da conduta como crime e consequente sanção. Ora, esta perspectiva, não consta nem na letra nem no espírito do legislador do Código Penal de 1886. Neste Código Penal, o artigo 27.º, na sua essência, estabelece que a pena “consiste na obrigação de reparar o dano causado na ordem moral da sociedade, cumprindo a pena estabelecida na lei e aplicada pelo tribunal competente.” Influenciadas pelas teorias absolutas dos fins das penas, da época, a pena visa somente a “retribuição, expiação, reparação ou compensação do mal pelo crime e nesta essência se esgota. É a justa paga do mal que, com o crime, se realizou, é o justo equivalente do dano do facto e da culpa do agente.” Deste modo, a reintegração do agente na sociedade não é a sua finalidade. Toda legislação penal angolana bem ou mal ainda esta influenciada pelo Código Penal de 1886.

10. Nos crimes cometidos no exercício de funções públicas, o bem jurídico protegido é a “integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário” e de forma casuística o “património alheio (público ou particular).” Ambos são igualmente crimes de dano (quanto ao grau de lesão do bem jurídico) e crime de resultado (quanto à forma de consumação do ataque ao objecto de acção). Assim, sendo os crimes de dano e de resultado regra geral reparáveis, isso obriga que no plano da aplicação (determinação da penalidade) o legislador respeite os princípios da proporcionalidade, necessidade e adequação previstos no artigo 57.º da CRA, sob pena da sua violação. Exemplo mais acabado do que fica expresso é o que acontece com o peculato, que nos termos dos artigos 313.º, 437.º e n.º 5 do  421.º é punido com pena de 12 a 16 de prisão maior se o bem ou valor envolvido exceder 600.000.00 (seiscentos mil kwanzas). Ora, 16 anos (pena máxima) é a pena mínima para o crime de homicídio voluntário simples (cujo bem jurídico protegido é a vida humana). Tratando-se de um crime reparável é um autêntico absurdo! 

11. A relação que se pretende fazer entre finalidade, gravidade das penas e diminuição da criminalidade não tem na dogmática penal e na prática uma relação directa. Historicamente, todas as teorias e escolas do Direito Penal que pugnaram por finalidades de prevenção geral/especial negativa (estigmatização e segregação do agente) no combate à criminalidade fracassaram e/ ou deram lugar ao chamado “direito penal do inimigo e do terror”, em que o cidadão é visto como objecto do processo penal e não sujeito. Por isso, reparo que esta tentativa de se equiparar as ditas penas “mais brandas” no novo Código Penal com as “mais graves” do Código Penal vigente, que na verdade não consagra os crimes em apreço, com excepção do peculato, resulta de um desconhecimento dos fundamentos estruturantes de cada um dos Códigos no seu tempo e no espaço. 

“O Direito Penal moderno é um direito “pro homine” e “pro persona”; já não se compadece com penais graves para alguns tipos de  crimes, quando reparáveis, sob pena de ser transformado num “direito penal simbólico, utilitarista e anti- humano”

12. Como instrumento de política criminal, o Direito Penal moderno é um direito “pro homine” e “pro persona”; já não se compadece com penais graves para alguns tipos de  crimes, quando reparáveis, sob pena de ser transformado num “direito penal simbólico, utilitarista e anti- humano”, por um lado. Por outro lado, devido ao que se chama hoje de “crise da pena privativa de liberdade”  ou “falência da pena privativa de liberdade”, os ordenamentos jurídicos penais, desde as décadas de 60 e 70 do século XX têm vindo a adoptar “penas alternativas” à pena privativa de liberdade”, caminho que, por sinal, o legislador angolano  muito bem acolheu no Novo Código Penal. Na verdade, a posição clássica que defende a pena privativa de liberdade como forma privilegiada de punir, porque desempenha uma função psicológica e dissuasora muito forte no seio da comunidade, tem sido posta em causa. É só olharmos para os elevados índices de criminalidade a nível mundial e tomemos a China como exemplo. Apesar de punir os crimes de corrupção com a pena de morte, a China é um dos países mais corruptos do Mundo.

13. Na nossa realidade, para os crimes cometidos no exercícios de funções públicas e crimes económico-financeiros, a justiça restaurativa/reparadora, sem deixar de lado a possibilidade de aplicação penas muito leves em função de cada caso, a transparência na gestão da coisa pública, a cultura de prestação de contas, a educação pelo bem comum, a declaração pública de bens por parte do gestor/agente público antes e depois do exercício das suas funções, são, a meu ver, os melhores instrumentos de política criminal para fazer face a estes crimes. De outra forma, salvo o devido respeito, é diversão política. 

14. Quanto aos crimes ambientais a preocupação é legitima, mas não se deve pensar que o Código Penal é o único instrumento jurídico que deve abranger todas as matérias de natureza criminal. Pela sua natureza e complexidade, os crimes ambientais devem merecer abordagem em outro diploma legal fora do Código Penal, com vista a um melhor tratamento e sistematização, pois qualquer lei respeitante terá que, necessariamente, estabelecer dois tipos de infracções: contraordenacional e criminal. Tipificar os crimes ambientais no Novo Código Penal e contraordenações numa outra lei seria dispersão legislativa.

15. Por tudo quanto aqui expresso, entendo que o legislador deve manter as penalidades aprovadas para os crimes cometidos no exercício de funções, pois o Direito Penal não deve ser instrumentalizado para fins políticos e visto como solução imediata para o “combate” dos crimes de corrupção no geral. O Direito Penal foi e continua a ser hoje um direito de última ratio.