JL virou as costas aos compromissos eleitorais

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João Lourenço inscreveu no seu programa eleitoral causas muito populares.

Em todo o mundo decente, o compromisso de combater a corrupção, nepotismo, bajulação, opacidade atrai eleitores, sobretudo os mais esclarecidos. Quando tomou posse como Presidente da República, no dia 26 de Setembro de 2017, a afirmação produzida por João Lourenço segundo a qual “Ninguém é suficientemente rico que não possa ser punido, ninguém é pobre demais que não possa ser protegido” rendeu-lhe muita simpatia entre os angolanos, sobretudo, entre aqueles que interpretam bem a língua portuguesa. Mas, de forma consistente, João Lourenço tem vindo a afastar-se dos seus mais importantes compromissos.

Por exemplo, a cruzada contra a opacidade tem vindo a sofrer duros revezes com a entrega, de mão beijada, de empreitadas públicas aos mesmos grupos empresariais.

No dia 15 de Agosto, Rafael Marques de Morais escreveu no seu Makaangola que nos últimos três anos, “sob mandato de João Lourenço, foram adjudicadas obras públicas por contratação simplificada (sem concurso público) num valor global de cerca de 2,5 mil milhões de dólares”. 

Entre as entidades beneficiadas por esse modelo de contratação pública que dispensa o confronto com outras propostas “destacam-se duas empresas às quais foi adjudicado o maior volume de obras por essa via. Trata-se da Omatapalo Construções e Engenharia, S.A., com um total de 423,2 milhões de dólares, e a Mota-Engil Angola, com um total de 331,7 milhões de dólares”.

No dia 1 de Setembro, a Mota-Engil assinou um contrato no valor de 298 milhões de euros (355 milhões de dólares) para a reabilitação e construção de estradas. Segundo a agência Lusa, o novo contrato é uma parceria, em partes iguais, com a empresa Omatapalo e visa a reabilitação da EN 230 entre as localidades de Muamussanda, na Província da Lunda Norte, e Saurimo, na Província de Lunda Sul, numa extensão de 267 km. 

Pelos vistos, a impunidade da Polícia só terminará quando já não houver nenhum pé descalço para abater.

De acordo com o Maka Angola, a Omatapalo, é uma “empresa que tem chamado atenção por ser maioritariamente detida pelo actual governador da Huíla, o empresário Luís Manuel da Fonseca Nunes”. No pacto societário da Omatapalo, consultado pelo Makaangola, não figura nenhum acionista com o nome de João Lourenço.

Porém, desde que o cidadão João Manuel Gonçalves Lourenço tomou posse como Presidente de Angola, em 2017, à Omatapalo já foram entregues, por contratação simplificada, quatro empreitadas públicas no valor total de 423,2 milhões de dólares e, por concurso público, cinco obras no valor total arredondado de 400 milhões de dólares.

No mesmo dia 1 de Setembro, por meio de um despacho, o Presidente da República autorizou a despesa global de 86,7 milhões de dólares e formalizou a abertura de procedimento de contratação simplificada para a construção de 24 vias urbanas nos municípios do Zaire. A contemplada por mais esse ajuste directo foi a espanhola Globaltec. Na sequência da adjudicação das obras no Zaire, jornal Valor Económico trouxe à superfície elementos que, no mínimo, tornam controversa a decisão de João Lourenço.

De acordo com aquela publicação, em 2016, o Tribunal de Contas chumbou 23 contratos de empreitadas para a construção de vias urbanas e dois para a construção de dois estádios de futebol na província do Zaire. À época, o Tribunal de Contas chumbou os contratos por estarem em “desconformidade com a lei”. O chumbo do Tribunal de Contas foi extensivo à empreiteira Globaltec por “não haver apresentado comprovativos de capacidade técnica quer através dos currículos dos seus engenheiros, quer o historial de obras similares executadas no passado”.

Quatro anos depois dessa decisão do Tribunal de Contas, o Presidente da República “recuperou” a mesma empreitada e, novamente, confiou a sua execução é mesmíssima empreiteira. O despacho presidencial de 1 de Setembro não explica se a nova vida dada à empreitada do Zaire se deveu à uma mudança de opinião do Tribunal de Contas e também nada diz se a construtora Globaltec já suplantou as insuficiências que a tornaram inelegível em 2016.

Temos, pois, que no governo do Presidente João Lourenço o regime de contratação simplificada deixou de ser excepção e é a regra, sobretudo em empreitadas que favorecem a Omatapalo.

O caso da empresa de Luís Nunes impõe que se faça a seguinte pergunta:  por que será que o Presidente da República dá o peito às balas pela Omatapalo? Por que será que João Lourenço torna oco o seu compromisso com a transparência por causa daquela construtora? 

No dia 28 de Agosto, Gustavo Costa alertava no Novo Jornal que ao “popularizar a contratação simplificada”, o Presidente da República “arrisca-se a novos desencontros com o mercado”. 

“Os ajustes directos, plenamente justificados nalguns casos, ao deixarem de ser excepções para passarem a ser a regra, ameaçam, na verdade, lançar o descrédito de Angola junto de investidores e parceiros multilaterais (…)”, concluiu o conceituado jornalista.

Por isso, novamente a pergunta, formulada de forma diferente: por que razão o Presidente da República arrisca os interesses de Angola promovendo uma modalidade de contratação pública que, não sendo ilegal, é, porém, menos transparente? E, sobretudo, porque, no geral, favorece uma mesma empresa?

Como o seu homólogo brasileiro, Jair Bolsonaro, no caso da pandemia da Covid-19, João Lourenço também parece afrontar os angolanos com a pergunta “sim, favoreço a Omatapalo e daí?” Daí? Daí a perda progressiva de apoio ao Presidente da República.

Nos tempos que agora são execrados, as empresas de Isabel dos Santos não precisavam de concorrer a nada para abocanharem as mais apetecíveis e lucrativas empreitadas públicas. Agora é a Omatapalo, que só precisa de um estalar de dedos para chamar a si as mais importantes obras públicas. O que mudou, afinal?

Outra bandeira eleitoral que João Lourenço vem deixando cair é o combate à bajulação.

Desencorajados no inicio do actual mandato presidencial, aos poucos os bajuladores foram ganhando fôlego e hoje são já um poderoso e ruidoso instrumento à disposição de João Lourenço. Sob nova designação de Jovens Solidários, os bajuladores recuperaram as mesmas práticas de antecessores como Movimento Espontâneo e AJAPRAZ. Tal como no passado, também agora eles usam a comida como meada de troca de apoio político ao Presidente da República. 

Sob o silêncio cúmplice do Presidente da República, populações famintas no interior do país são adestradas para pedir ajuda alimentar não ao governo do país ou a qualquer outro poder público, mas à uma organização privada ao serviço de João Lourenço. Como no passado, os bens alimentares trocados pelo apoio ao Presidente da República são tirados das reservas do Estado.

O cidadão comum que pretenda sair da cerca sanitária sobre Luanda, o agente económico que pretenda levar produtos perecíveis fora de Luanda estão sujeitos a humilhantes e demorados processos para a obtenção dos testes à Covid-19. No entanto, os rapazes do Presidente da República passeiam-se pelo país inteiro sem o menor constrangimento. Seguramente, nunca nenhum agente da Polícia ousou exigir-lhes qualquer teste ou autorização da Comissão Interministerial para furarem a cerca a Luanda.

Até mesmo no discurso dos auxiliares do Titular do Poder Executivo começa a ressurgir, com nova roupagem, a velha linguagem que atribui ao chefe o mérito das mais bem-sucedidas realizações oficiais. Quinta-feira, na inauguração do Laboratório de Análises Clínicas e Moleculares, a ministra da Saúde, Sílvia Lutucuta, substituiu a velha e cansada “forma clarividente como o Camarada Presidente…”, usada para endeusar José Eduardo dos Santos, pela novíssima “forma lúcida e determinada como Sua Excelência o Presidente da República…” , adoptada para massagear o ego de João Lourenço.

Em suma, estão de volta os tempos em que alguns desocupados transformaram em oficio a “arte” de babar ovo.

Irremediavelmente perdido por João Lourenço está o prometido combate à impunidade. Quase todos os santíssimos dias, a Polícia dá demonstrações práticas de como é uma instituição intocável, acima da lei. Cidadãos indefesos são abatidos como moscas por agentes da Polícia sem que os assassinos e seus superiores hierárquicos sintam a mão pesada da Lei. Com a provável exceção da Coreia do Norte, é muito improvável que exista no nosso planeta outro espaço em que as chefias da Polícia sejam politicamente tão bem protegidas quanto em Angola. Pelos vistos, o Presidente da República só intervirá na Polícia quando essa tiver cumprido a missão de dizimar todos os angolanos pobres e indefesos. Afinal, em Angola, como noutras paragens menos desenvolvidas, os poderes públicos abominam as classes mais desfavorecidas. É também a coberto da impunidade que o erário continua a ser livremente roubado. 

Outra promessa eleitoral de João Lourenço que anda pelas ruas da amargura é a luta contra o nepotismo. No Ministério das Finanças, sobretudo, nomeações de parentes directos de João Lourenço têm sido confrontadas com o compromisso de banir o favorecimento da parentela das práticas oficiais.

Na comunicação social pública há comportamentos e práticas contrários à prometida abertura. Realizações do MPLA, por mais insignificantes que sejam, continuam a encontrar na comunicação social pública o mesmo espaço privilegiado que sempre tiveram.

O sectarismo e o cinzentismo ganham cada vez mais terreno. Atitude e desempenho diferentes seriam impossíveis. As empresas de comunicação social públicas – e mesmo aquelas que foram recentemente arrastadas para a esfera pública – são, grosso modo, dirigidas pelas mesmas pessoas que serviram o ancien Presidente da República com a mesma devoção e lealdade de um bem adestrado cão de guarda. 

A direcção do aparato comunicacional do Estado está hoje confiada às mesmas pessoas que, num passado recente, se distinguiram na perseguição à imprensa privada e seus jornalistas e na anatemização dos chamados revús e de todos os cidadãos que manifestavam algum inconformismo com o estado das coisas. Como ninguém gosta de cortar a própria carne, é ingénuo esperar dessa gente a mudança de um paradigma que tão bons resultados materiais lhe proporcionou num passado recente. Há escassos três anos, os actuais comandantes da comunicação social pública, com raras e honrosas excepções, quase juravam que Angola desapareceria do mapa mundi no dia em que José Eduardo dos Santos deixasse o poder. 

Outro terreno em que as reformas prometidas por João Lourenço patinam a olhos vistos é o da justiça. Apesar do muito que foi prometido, o aparato da justiça continua ferreamente controlado e vigiado pelos mesmos indivíduos que, num passado recente, foram adestrados para inclinar a balança da justiça a favor dos poderosos.

Tal como no passado recente, as cadeias do país continuam apinhadas de pilha galinhas, cidadãos que cometem pequenos furtos, a mais das vezes para saciarem a fome. Crimes que podem ser reparados com uma reprimenda verbal, prestação de serviços sociais ou pagamento de multas. Os criminosos de colarinho branco continuam soltos, protegidos por uma justiça propositadamente lenta e a dar a ganhar rios do dinheiro roubado a escritórios de advogados.

É na justiça onde se espatifou por completo a máxima de João Lourenço de que “Ninguém é suficientemente rico que não possa ser punido, ninguém é pobre demais que não possa ser protegido”. 

Os “tubarões” que levaram o país ao descalabro em que vivemos têm nome e endereços conhecidos. Porém, nada lhes acontece. José Eduardo dos Santos, o incontestado chefe da turma, transferiu-se voluntariamente para a Espanha, mas quem paga as contas do luxo em que vive é o erário angolano.  

No MPLA, partido que deveria acompanhar o seu líder nas necessárias reformas para tornar Angola um país razoavelmente decente, os retrocessos são por demais evidentes. Na era de José Eduardo dos Santos não era possível encontrar numa estrutura como o Secretariado do Bureau Político um dirigente capaz de produzir “pérolas” como “o Sr. Abel Chivukuvuku, constitucionalmente, não pode ter, nem criar partido político em Angola, porque abandonou a UNITA e foi corrido da CASA-CE”.

Em suma, o contínuo desfasamento entre a prática e os compromissos eleitorais de João Lourenço não encoraja um cerrar de fileiras. Pelo contrário, é um convite à desmobilização. É uma ordem para o destroçar da tropa. Ademais, João Lourenço vem se multiplicando em sinais que sugerem um perturbador autismo. A insistência em oferecer ao seu escolhido Manuel Pereira da Silva (Manico) instalações construídas de raiz para a Comissão Nacional Eleitoral, a um custo próximo de 45 milhões de dólares, sugere que o Presidente da República está a guiar-se exclusivamente pelos seus impulsos. Construir instalações novas para a CNE num país em que o património imobiliário do Estado é frequentemente ampliado já é, também, uma evidência de que além de autista, João Lourenço tornou-se num homem birrento.

E, vamos convir, neste mundo cheio de provações diárias, não há tempo e nem pachorra para aturar a birra.