No seu mais recente texto no Novo Jornal, Gustavo Costa faz uma revelação perturbadora. Segundo ele, na sua última reunião, a maioria dos membros do Secretariado do Bureau Político do MPLA recusou-se a abordar o momento político actual.
A direcção do MPLA age como se não estivesse a ocorrer nada de anormal no país.
“Esta reacção dalguns sectores do MPLA só espelha a arrogância, a cegueira e a irracionalidade política de quem sempre se habituou a ditar as regras do jogo através de lentes embaciadas que não lhe permitem distinguir o preto do branco”, diz o articulista.
Depois dessa, repete-se, perturbadora revelação de Gustavo Costa, há duas (ou mais) ilações a extrair: ou o MPLA perdeu a sua bússola em algum lado qualquer ou ela está completamente descarregada.
Há uma semana e na sequência de um inquietante comunicado do Bureau Político do MPLA, intelectuais como Jacques dos Santos, João Melo, Luzia Moniz e Jonuel Gonçalves, para só citarmos esses que deram “a cara ao manifesto”, posicionaram-se.
Para Jacques dos Santos, um escritor de quem não se pode afirmar que vê o MPLA como um grupo de sarnentos (“amo o MPLA, mas detesto os seus métodos”, é assim que ele define a sua relação com o partido da situação), escreveu a propósito o seguinte: “Ver depois um órgão da importância e com as responsabilidades do Bureau Político do MPLA, a produzir um comunicado tão deficiente, tanto na forma como no conteúdo, aguardado pelo impacto forte que provocaria face ao contexto actual, é deprimente e ao mesmo tempo preocupante. Porque, tristemente ferido de uma falsa identidade, já que empola a negritude e explora subtilmente o racismo, de um modo que nunca me habituei a ver nos procedimentos do glorioso MPLA, onde se defendeu sempre, para além da unidade nacional, a ideia de que o racismo tem, sempre teve, uma base económica a sobrepor-se à cor da pele de cada um. Não prosseguir nessa linha é dar campo aos mais reles ataques à condição de origem étnica. E é assim que passamos a compreender os protagonismos de certos indivíduos, transformados em gestores, dirigentes e deputados do partido que nos habituamos a respeitar, e cujas intervenções, de tão medíocres, chegam a causar náuseas, mesmo a quem não sofra do estômago”.
Luzia Moniz, jornalista e socióloga, que “vive” o quotidiano angolano a partir de Portugal, onde se estabeleceu há anos, entende que a “truculenta e discriminatória declaração do MPLA traduz um partido em dificuldades de se adaptar aos novos tempos, preferindo continuar a actuar como se de jure ainda vivesse na ditadura do monopartidarismo. Até a linguagem e metodologia que usa remontam a esse tempo”.
João Melo, antigo deputado pelo MPLA e até recentemente ministro da Comunicação Social, reagiu ao comunicado nos seguintes termos: “(…) é no mínimo perturbador verificar que, em pleno século XXI, sectores e figuras do MPLA, com ou sem responsabilidades, estejam a esgrimir argumentos identitários deste tipo num debate que deveria ser político, no sentido elevado que deve ter a política, isto é, sem espezinhar os requisitos de ética e de moral”. João Melo, recorda-o Gustavo Costa, não escrevia sobre política interna desde que deixou de ser ministro, em Outubro de 2019.
Sobre a surpreendente deriva do MPLA, Jonuel Gonçalves, académico, é categórico: “(…) quem utiliza isso (discurso racista) é a extrema direita (…) Isto é usado pela extrema-direita e define a extrema-direita e quem continua a fazer isto vai derrapar mesmo para lá. Este é um clima que se criou no conjunto do país onde nós vamos substituir o debate sobre, sobre o futuro do país, pelo debate sobre se essa pessoa tem aquele aspecto, tem os olhos assim, tem o cabelo assim, usa um passaporte passado. Nisto tudo, o poder tem realmente responsabilidades, porque é poder. E tem que exercer esse poder de forma responsável e não porque quer criar divisões no país. Há outras divisões sem dúvidas, há divisões sociais, há antagonismo de opinião notáveis e há a grande diferença entre os indivíduos em relação a rostos e sabores e etc. isto tem de ser respeitado, o poder tem essa responsabilidade”.
É a inexplicável postura do MPLA de virar as costas aos factos que explica a insistência de Albino Carlos no “desastre” que foi o comunicado do Bureau Político.
Entrevistado pela Voz da América, Albino Carlos, um homem habitualmente muito ponderado, reafirma que o seu partido “é contra os políticos que cumprirem agendas alheias e não promovem a unidade nacional”.Albino Carlos referiu-se ao líder da UNITA nos exactos termos que constam do comunicado do Bureau Político. “São líderes sem escrúpulos. São estrangeiros ao serviço de agendas estrangeiras, contrárias aos interesses superiores de Angola”.
A reafirmação do discurso carregado de racismo e de xenofobia bem como a indiferença com a realidade provam o que Gustavo Costa diz: o MPLA enxerga o país através de “lentes embaciadas que não lhe permitem distinguir o preto do branco”.
É caso para dizer que, com essa malta, a gente não vai lá…