PR oficializou o cabritismo

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Procuradores e juízes não se fizeram rogados e sem cerimónias atiraram-se ao “bofe”

Declarante no processo em que são réus Manuel Rabelais, antigo director do GRECIMA, e seu colaborador Hilário dos Santos, Walter Filipe, ex-governador do Banco Nacional de Angola, disse, no dia 11 de Fevereiro do corrente, que altos dignitários do país, entre eles generais, oficiais da Polícia e magistrados judiciais e do Ministério Público frequentavam assiduamente os corredores do banco para terem acesso a divisas.

Ele não esclareceu – e, aparentemente, ninguém se mostrou interessado em saber – se os beneficiários pagavam contravalores em kwanzas ou se as divisas eram oferecidas. As idas e vindas desses dignitários aos corredores do BNA ocorreram no tempo da outra senhora.

Foi pelo suborno e pela corrupção que José Eduardo dos Santos construiu uma vasta rede de asseclas que lhe permitiu (des)governar o país sem quaisquer ruídos. O antigo Presidente da República comprou a cumplicidade e o silêncio dos poderes judicial, castrense, executivo e da militância do MPLA. Pela via de “oferendas”, traduzidas em carros topo de gama (os juízes conselheiros do Tribunal Constitucional estrearam os Jaguares em Angola…), casas nos mais luxuosos condomínios construídos com fundos públicos, acesso ilimitado a créditos bancários sem quaisquer garantias e outras benesses, o anterior presidente “secou na fonte” todas e quaisquer veleidades.

José Eduardo dos Santos saiu de cena há quatro anos, mas o “software” com que manietou o país aproveitado e até melhorado pelo seu sucessor.

 O Decreto Presidencial 69/21 sobre o “Regime de Comparticipação Atribuída aos Órgãos de Administração da Justiça pelos Activos Financeiros e Não Financeiros por si Recuperados” é uma significativa melhoria desse software; é um atalho que leva juízes e procuradores directamente  “ao pote”.

No fundo, o Presidente João Lourenço deixou cair os disfarces e deu dignidade institucional a um prática que no passado já se chamou auto-consumo, algo que o já desaparecido Angolense traduziu para cabritismo.

O cabritismo é inspirado numa afirmação do falecido Flávio Fernandes, que, numa reunião com sobas de Malange, que o acusavam de apropriação excessiva de bens públicos, fez recurso a esse extraordinário quanto “letal” argumento: “hombo ydila boso bua ikutila”, ou seja, a cabra come onde está amarrada. 

Embora o Decreto Presidencial estabeleça que a comparticipação é partilhada pelos tribunais e pela PGR  somente quando um activo for perdido a favor do Estado, “mediante decisão condenatória”, juízes, procuradores e mesmo organismos públicos já, há muito, vem transferindo para a sua esfera património apreendido, mas ainda não perdido definitivamente para o Estado.

Ao Correio Angolense chegaram informações segundo as quais a maior parte dos apartamentos residenciais das Três Torres do eixo-viário que o Serviço Nacional de Recuperação de Activos da Procuradoria Geral da República apreendeu a antigos funcionários seniores da Sonangol já estão ocupadas por operadores de Justiça.

Um Julho do ano passado, o Serviço de Recuperação de Activos da PGR anunciou a apreensão de três edifícios, sendo um de escritórios, e dois residenciais. A apreensão dos imóveis, comumente designados como as Torres A,B e C, foi feita ao abrigo da Lei sobre o Repatriamento Coercivo e Perda Alargada de bens. 

 No comunicado, a PGR não identificou os proprietários dos três edifícios, mas eles eram geralmente associados a antigos dirigentes da Sonangol, nomeadamente os ex-presidentes do Conselho de Administração, Manuel Vicente e Francisco de Lemos, bem como a Orlando Veloso, antigo director geral da SONIP. 

Nenhum processo envolvendo qualquer daquelas torres transitou em julgado, mas a maior parte dos apartamentos já foram distribuídos e em muitos casos já ocupadosNo fundo, o Decreto Presidencial veio apenas  dar cobertura legal a uma prática que já estava em curso“, disseram ao Correio Angolense fontes convergentes.

Mas não são apenas juízes e procuradores que “gingam” em torno e  sobre património apreendido pelo Serviço de Recuperação de Activos da PGR. Ministério das Finanças e outros departamentos ministeriais, a quem a PGR confiou a tutela provisória desses bens, também já festejam antecipadamente.

Embora tenha ciência de que fracções da emblemática Torre Two pertencem a terceiros angolanos, a Direcção  Nacional do Património do Ministério das Finanças não mostra a mínima disponibilidade de abrir mão de um milímetro que seja do referido edifício, cuja tutela provisória lhe foi atribuída.

A empresa angolana Sojoca, dona de três pisos daquele edifício, já anunciou que vai pleitear os seus direitos em tribunal. 

” Ah, sim! Vamos  resolver isso em tribunal. A intransigência da Direcção Nacional do Património do Ministério das Finanças não nos dá outra opção“, disse há duas semanas ao Correio Angolense o escritório de advogados Amaral Gourgel, que representa a Sojoca. 

O “self service”  dos operadores de justiça estendeu-se aos bancos. Há relatos de contas bancárias apreendidas pelo SNRA, no âmbito de investigações de putativos crimes de corrupção, que ficaram repentinamente “carecas”. 

Em alguns casos estamos a falar de contas bancárias que estavam muito bem nutridas, mas que de um momento para outro ficaram completamente vazias”,segundo contou ao Correio Angolense uma fonte familiarizada com o assunto.

Recentemente questionado por reputados juristas pelo seu cunho anti-ético, o cabritismo, que o Presidente da República oficializou por via do Decreto 69/21, pode ser impugnado legalmente.

Um jurista que trabalha no Ministério das Finanças disse ao Correio Angolense não encontrar na Constituição angolana qualquer disposição que dê suporte ao Decreto do Presidente.

Entre os 7 artigos da Constituição que estabelecem as competências do Presidente da República, nos seus mais diversos papéis ou funções, não existe  um único  no qual  João Lourenço fundamentou a sua decisão. Não há uma única alínea que o autorize a afectar os bens do Estado nestes termos. O Presidente da República praticou um acto literalmente ilegal”.

Segundo  esse jurista, “o Presidente não está autorizado, de modo algum, a repartir os bens do Estado. É igual a ir ao Tesouro e retirar de lá dinheiro para oferecer à Ministra das Finanças pelo seu desempenho. Não é possível”.

Por outro lado, diz o mesmo interlocutor,  “a Lei da Recuperação dos Activos não habilita o Presidente da República a regulamentar nada. E a lei não contemplou isso porque essa regulamentação não cai na alçada do Presidente da República. Essa é matéria que cai na competência absoluta da Assembleia Nacional, nos termos da alínea e), do artigo 164 da Constituição da República. Ou seja, estamos perante uma inconstitucionalidade orgânica”.