Um memorando do seu Centro de Estudos de Direito Público e Ciências Jurídico-Políticas diz que na vigência do estado de calamidade pode ser considerado inconstitucional iniciar e concluir uma alteração da Constituição
Acolhida pelos lourencistas como uma “obra prima”, que esfregam” constantemente ‘na cara’ da oposição como prova da sua incapacidade de fazer seja o que for, a proposta de revisão constitucional que o Presidente da República apresentou publicamente no pretérito dia 2 de Março suscita ao Centro de Estudos de Direito Publico e Ciências Jurídico-Políticas da Universidade Agostinho Neto “preocupantes dúvidas e reticências sobre a sua conformidade e bondade”, as quais abrem “hipóteses reais de colisão com princípios estruturantes da Constituição e assim retrocesso constitucional”.
O CEDP da Universidade Agostinho Neto é uma instituição vocacionada para realizar estudos de natureza constitucional. É dirigido pelo Professor Catedrático Raul Carlos Vasques de Araújo.
Reconhecendo que a “iniciativa de revisão constitucional levanta, inquestionavelmente, questões relevantes e propostas muito positivas, conducentes a um desenvolvimento e evolução da CRA (Constituição da República de Angola) de 2010, como, por exemplo, nos domínios da fiscalização parlamentar da governação, da universalidade do voto, da independência do Banco Central, da administração pública e do Poder Local”, o CEDP coloca, contudo, ao Presidente da República (na qualidade de proponente), à Assembleia Nacional (na qualidade de órgão competente para alterar a CRA) e à sociedade preocupações, que visam “contribuir para urna melhor ponderação das questões que se situam na ténue fronteira entre, por um lado, a ‘percepção’ de melhoria e, por outro lado, o manifesto retrocesso”.
O memorando do CEDP coloca e dá respostas a várias questões.
A delimitação do objecto da revisão, sobretudo quando a iniciativa é extraparlamentar,é uma questão constitucionalmente relevante e carecida de ponderação. A sua importância é acrescida pela surpresa da iniciativa (de todo imprevista), pela celeridade imprimida à sua tramitação e, sobretudo, por ter deixado de tratar muitas matérias que, decorridos onze (11) anos de vigência da Constituição de 2010, a comunidade politica e académica gostaria de ver tratadas para permitir a sua adequação ao actual contexto do Pais
Sobre se é ou não constitucional rever a Constituição na vigência de uma situação (estado) de calamidade pública de âmbito nacional, a instituição entende que embora a “situação de calamidade pública (ou estado de calamidade pública) que vigora presentemente não conste do rol de estados de excepção constitucional referidos no art.º 238 da Constituição (estados de guerra, de sítio e de emergência), pelo que numa interpretação literal deste artigo da CRA não há nenhum limite circunstancial que obste a realização (…) desta revisão da Constituição”, alerta, porém, que sendo o estado de calamidade pública também um estado de excepção constitucional “durante a sua vigência pode ser considerado inconstitucional iniciar e concluir uma alteração da Constituição”.
“Se olharmos com ‘olhos de ver’ para o estado (situação) de calamidade pública na sua dimensão material, constatamos que nele são impostas algumas restrições/condicionamentos ao pleno exercício de direitos dos cidadãos, como, por exemplo, o direito de ir e vir (cerca sanitária nacional e na capital do país ), a liberdade de manifestação, de reunião colectivas, etc., limitações cabíveis (e típicas) dos estados de excepção constitucional e apenas nestes justificáveis”.
“Este entendimento”, diz o CEDP, “conduz-nos à compreensão de que, por restringir o exercício de direitos e liberdades fundamentais, o estado de calamidade pública é também um estado de excepção constitucional (um estado de emergência “camuflado” no dizer de alguns), pelo que durante a sua vigência pode ser considerado inconstitucional iniciar e concluir uma alteração da Constituição. Pior ainda se a situação ou estado de calamidade vier a agravar-se”.
À pergunta sobre se é constitucionalmente conforme o poder de iniciativa limitar quer o âmbito da revisão quer o poder de revisão da Assembleia Nacional, o CEDP começa por questionar o entendimento de que a proposta do Presidente da República fixa a revisão constitucional aos artigos e números nela constantes, não podendo os deputados inserir e discutir outros artigos da Constituição da República de Angola.
“Considerando que a Assembleia Nacional é o único órgão com competência para aprovar alterações à Constituição e que os Deputados à AN, tal como o Presidente da Republica, também têm iniciativa de revisão da Constituição parece legitimo questionar a constitucionalidade daquele entendimento. Caso o entendimento e o procedimento in concreto, sejam no sentido de impedir que 1/3 de Deputados possam fazer aditamentos à proposta em apreciação ou apresentar em período razoável outro projecto de revisão, não parece haver dúvidas da inconstitucionalidade desse procedimento e da subsequente inquinação de todo o processo”.
O CEDP alude, ainda, a dúvidas existentes quanto à constitucionalidade da delimitação do objecto da revisão pelo projecto apresentado, sobretudo quando a iniciativa é extraparlamentar, “isto é, proveniente de um órgão incompetente para aprova-la e, com isso, condiciona substantivamente quem é competente em razão da matéria”..
“Esta é uma questão constitucionalmente relevante e carecida de ponderação. A sua importância é acrescida pela surpresa da iniciativa (de todo imprevista), pela celeridade imprimida à sua tramitação e, sobretudo, por ter deixado de tratar muitas matérias que, decorridos onze (11) anos de vigência da Constituição de 2010, a comunidade politica e académica gostaria de ver tratadas para permitir a sua adequação ao actual contexto do Pais”.
O confisco e a nacionalização contidos na proposta de revisão constitucional são figuras típicas do período revolucionário 1ª Republica e do Estado autoritário, que foram conscientemente abandonadas quer nas Leis constitucionais de 1991 e 1992 quer na Constituição de 2010, pela sua incompatibilidade com os princípios constitucionais de um estado democrático e de um estado de direito. São medidas que podem representar um retrocesso constitucional que corrige para o mal o que está bem na Constituição de 2010
O Centro de Estudos de Direito Publico e Ciências Jurídico-Políticas da UAN toma como “motivo de profunda preocupação” a proposta de Confisco e Nacionalização.
“Partindo do pressuposto de que ‘existe uma lacuna constitucional nesse domínio’, a proposta pretende introduzir na Constituição os institutos do confisco (como sanção à ofensa dos interesses econ6micos do Estado) e de nacionalização (em caso de ponderosas razões de interesse nacional). O pressuposto está equivocado. Não há lacuna. Estas figuras típicas do período revolucionário da 1 ª Republica e do Estado autoritário, foram conscientemente abandonadas quer nas Leis constitucionais de 1991 e 1992 quer na Constituição de 2010, pela sua incompatibilidade comos principais constitucionais de um estado democrático e de um estado de direito”.
De acordo com o memorando, nos “estados democráticos de direito que reconhecem a livre iniciativa econ6mica, a economia de mercado e protegem a propriedade privada, só é legitima a apropriação pública de bens privados através dos mecanismos que a Constituição tipifica no artigo 37゜(expropriação por utilidade pública e requisição civil temporária)”
Para o CEDP, o “resgate e a constitucionalização destes instrumentos contrariam os princípios constitucionais acima referidos, ofendem o limite material de revisão constante das alíneas e) e f) do artigo 236 ゜ da Constituição (garantia constitucional de protecção da propriedade privada e o estado de direito) e gera uma antinomia normativo-ideológica com as normas da CRA atinentes ao direito de propriedade (artigo 37., 1/2) e ao direito à justa indemnização em caso de expropriação por utilidade pública”.
Em suma, diz o memorando, “a medida proposta pode representar um retrocesso constitucional e que ‘corrige para o mal o que esta hem’ na Constituição de 2010”.