1.
Na denominada “Operação Caranguejo” não são apenas os números que enjoam. São perturbadoras algumas reacções que aparentam algum estarrecimento ou surpresa.
Os números dizem que o Major Paulo Lussati pretenderia evadir-se do país com mais de 10 milhões de dólares, acima de 700.000.00 euros e mais de 800 milhões de kwanzas, amontados em 19 malas.
Depois, há uma elevada quantidade de propriedades imóveis, algumas das quais na Europa, e sem número de carros topo de gama.
No seu principal noticiário do dia 24, a TPA, a quem mais uma vez e de forma inexplicável foi dado o exclusivo da matéria, revelou que o Major Lussati transferiu, com êxito para o exterior, mais de 1 bilião de dólares
No mesmo dia em que à TPA foi concedido o privilégio de abrir parcialmente a Caixa da Pandora, a Casa Civil do Presidente da República anunciou, através de uma Nota de Imprensa, as exonerações dos seguintes oficiais generais:
1. Tenente-General Ernesto Guerra Pires, do cargo de Consultor do Ministro de Estado e Chefe da Casa de Segurança do Presidente da República;
2. Tenente-General Angelino Domingos Vieira, do cargo de Secretário para o Pessoal e Quadros da Casa de Segurança do Presidente da República;
3. Tenente-General José Manuel Felipe Fernandes, do cargo de Secretário-Geral da Casa de Segurança do Presidente da República;
4. Tenente-General João Francisco Cristóvão, do cargo de Director de Gabinete do Ministro de Estado e Chefe da Casa de Segurança do Presidente da República;
5. Tenente-General Paulo Maria Bravo da Costa, do cargo de Secretário para Logística e Infra-Estruturas da Casa de Segurança do Presidente da República;
6. Brigadeiro José Barroso Nicolau, do cargo de Assistente Principal da Secretaria para os Assuntos dos Órgãos de Inteligência e Segurança de Estado da Casa de Segurança do Presidente da República.
A nota da Casa Civil do Presidente da República não estabelece nenhum link entre a exoneração desses oficiais e os golpes financeiros perpetrados pelo Major Pedro Lussati, que, aliás, não consta entre os defenestrados, embora ele seja o epicentro da nova “borrasca” que rebentou no colo na Presidência da República.
Apenas no comunicado de imprensa da Procuradoria Geral da República, do mesmo dia, se percebe o vínculo entre os oficiais exonerados e o cometimento de crimes de peculato, retenção de moeda, associação criminosa e outros, de que Pedro Lussati é o rosto.
No comunicado, a PGR refere que as acções criminosas ora descobertas “remontam” há “anos atrás”. Mas não esclarece se esses “anos atrás” são exclusivamente referentes ao período anterior ao início do mandato do Presidente João Lourenço.
Pouco dada a ousadias, a TPA não procurou obter, junto das suas generosas fontes de informação, o período os “anos atrás” mencionados pela PGR.
2.
Quando, no dia 2 de Setembro de 2010, definiu a Presidência da República como o epicentro da corrupção em Angola, as mais exaltadas almas do sistema reclamaram a cabeça do jornalista.
Nesse texto, Rafael Marques de Morais sublinhou que a “Presidência da República de Angola tem sido usada como um cartel de negócios obscuros”.
Transcorreram anos sobre o escrito do jornalista, mas nada mudou.
O rumoroso escândalo de malas recheadas de dólares e euros que um Major pretendia tirar ilicitamente do país envolve a Presidência da República.
Quando não os pratica directamente, a Presidência da República instiga ou condescende com actos de corrupção.
A corrupção na Presidência da República não tem nada a ver com os seus ocupantes circunstanciais.
A corrupção emana da natureza e dos ilimitados poderes da Presidência da República.
Deputados, ministros e todos os cidadãos atentos sabem que o Orçamento Geral do Estado é a principal fonte da corrupção na Presidência da República. Há outras fontes, nomeadamente a Sonangol e a Endiama. Mas é no OGE que está o “filé mignon”.
Todos os anos, o Orçamento Geral do Estado oferece à Presidência da República os instrumentos necessários à permanente farra com dinheiro público.
A propósito do caso que envolve o major Lussati, o economista Manuel Neto da Costa ateve-se, apenas, ao OGE de 2021 para explicar como a Presidência da República é abastecida abundantemente de recursos públicos e como eles são geridos sem o mínimo de controlo e rigor.
O economista vai ao Capítulo V – Disciplina Orçamental – do OGE de 2021 e no seu artigo 9.º, referente à execução orçamental, destaca: “As despesas especiais de segurança interna e externa de protecção do Estado, constantes do Orçamento Geral do Estado, estão sujeitas a um regime especial de execução e controlo orçamental, de acordo com o que venha a ser estabelecido pelo Presidente da República, enquanto Titular do Poder Executivo”.
No Artigo 12.º , relativo à Despesas e Fundos Especiais, Neto da Costa retira:
1. Ficam sujeitos a um regime especial e de cobertura, de execução e de prestação de contas, as despesas especiais, afectas aos órgãos de soberania e serviços públicos que realizam as funções de segurança interna e externa do Estado, integrados no Sistema Nacional de Segurança, em termos que assegure o carácter reservado ou secreto destas funções e o interesse público, com eficácia, prontidão e eficiência.
2. São inscritos no OGE 2021, créditos orçamentais que permitam a criação de Fundos Financeiros Especiais de Segurança a funcionarem como reserva estratégica do Estado, para a execução das despesas referidas no número anterior.
3. A forma de utilização e de prestação de contas dos Fundos Financeiros Especiais de Segurança é regulamentada pelo Presidente da República, enquanto Titular do Poder Executivo.”
Da leitura das disposições acima, Manuel Neto da Costa, que já foi ministro do Planeamento do actual Executivo do Presidente João Lourenço, conclui que não lhe “parece que tal regime especial de cobertura, execução e prestação de contas das referidas despesas tenha alguma vez, de jure e de facto, sido estabelecido, deixando-se assim os procedimentos ao critério dos órgãos e pessoas que as executam. Deste modo, existirão falhas no escrutínio que deve ser realizado pelos órgãos competentes, como o Ministério das Finanças, o Banco Nacional de Angola, o Conselho de Defesa Nacional, o Presidente da República (Titular do Poder Executivo) e a Assembleia Nacional (através da sua Comissão Especializada), pois não existirão mecanismos claros de segregação de funções e de funcionamento dos freios e contrapesos requeridos. Não é de admirar, por isso, que existam ‘sacos azuis’ com que se deleitam majores…”
O major Pedro Lussati não se tornou multimilionário por ter neurónios excepcionalmente dotados.
Tornou-se multimilionário porque a Presidência da República transformou-se numa casa de uma qualquer mãe Joana em que dinheiro público é manuseado sem critérios e, pior, sem controlo.
A barulheira toda em torno do caso em certo sentido equivale à autoflagelação do próprio sistema.
Os diversos, diferentes e milionários Fundos Especiais (ou Operativos, como são chamados no jargão da Presidência) que a Assembleia Nacional, por via do OGE, atribui anualmente à Casa de Segurança são um tentador convite ao roubo, ao desvio, ao enriquecimento ilícito.
Pedro Lussati foi, por anos a fio, técnico de processamento de salários. Por ele passavam todas as listas dos soldos destinados às distintas ramificações da Casa de Segurança. É ele que processava os salários dos milhares de membros da Unidade de Segurança Presidencial (também conhecida como primeiro cordão), Unidade da Guarda Presidencial (segundo cordão), Chacal ( tropa especial que compõe o terceiro cordão) e dos distintos órgãos dependentes, nomeadamente, o Gabinete de Estudos de Segurança (GES) e Gabinete de Acção Psicológica e Informação (GAPI).
É também pelo processador de Pedro Lussati que passavam as listas salariais de entidades como Brigada de Desmontagem, Brigada de Limpeza, Banda Musical da Guarda de Honra do Presidente da República, Gabinete Médico do Presidente da República (que inclui a Clínica Multiperfil), o Gabinete de Voos do Presidente da República.
Processando mensalmente folhas salariais de milhares de dependentes da Casa de Segurança não pode ser improvável que Pedro Lussati as engordasse com servidores fantasmas ou mesmo já falecidos.
Além desse “filé mingnon”, a Pedro Lussati também era permitido levantar ou movimentar dinheiro alocado nos distintos Fundos Especiais (Operativos) que a Casa de Segurança da Presidência plantou em vários bancos, especialmente públicos.
Alguém, em sã consciência, acredita que ao Presidente da República, enquanto titular do Poder Executivo, sobra tempo para monitorar a “ forma de utilização e de prestação de contas dos Fundos Financeiros Especiais de Segurança”?
Alguém, em sã consciência, acredita que ao Presidente João Lourenço sobre tempo para conferir, uma a uma, as milhares de folhas salariais processadas mensalmente pela sua Casa de Segurança para, eventualmente, expurgá-las de nomes repetidos ou de trabalhadores inexistentes?
Os milhares de integrantes da Tropa Especial Chacal, baseados no Kuando Kubango, fazem prova de vida?
Não! Pedro Lussati não é nenhum génio. O sistema é que lhe colocou nas mãos todas as ferramentas necessárias para o roubo, o saque.
A facilidade com que qualquer “kangandala”(adjectivo que tomo emprestado do Salas Neto) enriquece na Presidência da República sugere que ali só não se “organiza” quem é “vesgo” ou “boelo”.
《O escândalo em curso oferece uma boa oportunidade para uma reforma séria no sistema que drena dinheiro à Presidência da República. Impõe-se o fim da multiplicidade de Fundos Especiais, no fundo sacos azuis de que se abastecem, a seu bel prazer, alguns “filhos de Deus”, ou sujeitá-los a uma rigorosa e sistemática fiscalização da Assembleia Nacional》
Repete-se: os “mais altos comandos” deste país não têm razão nenhuma para se fingirem estarrecidos. Os desmandos e as estripulias do major Pedro Lussati estão dentro do paradigma que governa a utilização do erário.
O agora execrado major era para a Casa de Segurança do Presidente da República aquilo que em todas as instituições castrenses são conhecidos e venerados como “Financeiros”. Com largas conexões e cumplicidades no Ministério das Finanças e nos bancos públicos, todos esses indivíduos são multimilionários.
O escândalo em curso oferece uma boa oportunidade para uma reforma séria no sistema que drena dinheiro à Presidência da República. Impõe-se o fim da multiplicidade de Fundos Especiais, no fundo sacos azuis de que se abastecem, a seu bel prazer, alguns “filhos de Deus”, ou sujeitá-los a uma rigorosa e sistemática fiscalização da Assembleia Nacional.
A prisão de Pedro Lussati e a demissão de altos quadros da Casa de Segurança do Presidente da República não secam a fonte do problema. Nem mesmo a mais do que inevitável defenestração do General Pedro Sebastião e do seu adjunto resolverão o assunto. A conjecturada ida de Eugénio Laborinho ou do General Patónio, ambos amigos muitos chegados ao PR, também não vai alterar nada. O que é preciso é alterar o “chip” e introduzir-lhe elementos como a transparência, a boa governação, o respeito pelo erário. Muito importante: a Presidência da República e o seu titular não podem continuar a ser o epicentro do país. Como qualquer ministro ou secretário de Estado, o Presidente da República também é um servidor público, o primeiro, cujos actos e práticas devem estar sob monitoramento e escrutínio de outras entidades.
Quase 20 anos depois do fim da guerra, Angola não pode continuar a ser gerida sob os mesmos paradigmas dos tempos do conflito armado. A proliferação de Fundos Especiais, generosamente abastecidos pelo OGE, traduz uma gestão opaca, sob a qual prosperam os Lussatis desta vida.

3.
O protagonismo do Serviço de Informação e Segurança do Estado (SINSE) no caso que envolve o major Pedro Lussati está a expor clivagens entre essa instituição e a Casa de Segurança do Presidente da República.
Não se tratando de disputa por território – as duas instituições têm as respectivas áreas devidamente demarcadas – as fricções, muito explícitas neste caso, parecem mais próximas de uma rinha de galos, envolvendo os respectivos chefes.
Não se sabe se apanhado em contrapé ou não, a verdade é que neste momento a rinha pende para o General Fernando Miala. De um só golpe, o chefe do SINSE expôs de maneira crua as fragilidades do General Pedro Sebastião. Mostrou que ou o Chefe da Casa de Segurança é cúmplice do major Pedro Lussati ou não sabe a quantas anda a casa que comanda.
Aturdido, o General Pedro Sebastião se calhar ainda nem sequer percebeu que a casa está vazia. Ainda sob os efeitos do violentíssimo golpe, Pedro Sebastião muito provavelmente ainda não se deu conta que, de uma só assentada, foi despojado do Tenente-General Ernesto Guerra Pires, seu consultor, do Tenente-General Angelino Domingos Vieira, seu Secretário para o Pessoal e Quadros ou do Tenente-General José Manuel Felipe Fernandes, Secretário-Geral. Se calhar nem sabe ainda que também está sem o Tenente-General João Francisco Cristóvão, seu Director de Gabinete.
Quando tiver recuperado das “estrelas” por certo que colocará o seu lugar à disposição do Presidente da República. Por três razões: 1) porque é suposto ter ainda alguma vergonha na cara: 2) não pode trabalhar sem auxiliares; 3) não foi tido nem achado na decisão que culminou na desova quase total do seu gabinete.
O General Pedro Sebastião sairá pelo próprio pé ou será empurrado. Se o Presidente da República for a isso obrigado, ou seja, a exonerar o Chefe da Casa de Segurança, terá de estender a medida ao Chefe Adjunto da Casa de Segurança, General Siqueira Lourenço.
Esta é uma boa oportunidade para o Presidente da República mostrar ao País se tem ou não coragem de cortar a própria carne.