Toda a caminhada…

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“Os partidos políticos têm direito a igualdade de tratamento por parte das entidades que exercem o poder público,  direito a um tratamento imparcial da imprensa pública e direito de oposição democrática,  nos termos da Constituição e da lei”

(Número 4 do Artigo 17.º da Constituição da República de Angola de 2010)

Com mais ou menos palavras, com mais ou menos vírgulas, a generalidade das Constituições de países democráticos e de direito consagra esses direitos e protecção às organizações políticas com existência legal.

Como nas demais, também a nossa, aprovada em 2010 e revista este ano, estabelece, no seu Artigo 6.º, estabelece a Supremacia da Constituição e legalidade. Trocado em língua de gente humildade, essa disposição significa que ninguém, mas absolutamente ninguém, está acima da Constituição e da Lei

Quando no dia 13 de Setembro as estações televisivas TPA e Zimbo anunciaram, quase simultaneamente, que a partir daquele momento deixariam de cobrir todos e quaisquer eventos envolvendo a UNITA quem não anda neste momento só a ver a banda a passar percebeu que havia uma mão oculta por detrás da intempestiva decisão das duas emissoras. Percebeu-se que alguém escondera rapidamente a mão com a qual tinha acabado de violentar a Constituição. 

Apenas um dia depois do surpreendente anúncio das duas televisões, KB Gala, pseudónimo artístico atrás do qual se “oculta” o grande jornalista, escritor e agora jurista Felisberto M. da Costa, deu pistas mais do que esclarecedoras sobre o dono da mão que traiçoeiramente bateu na Constituição.

Na sua página do Faceou, no dia 14 de Setembro, o nosso Sherlock Holmes escreveu: “Um dos grandes equívocos de políticos (…) é de não saberem qual é a estrutura do sistema nacional de comunicação social, a constituição e leis afins. Quem manda na CS pública é o Chefe do Executivo. É um comando vertical. Quando vejo líderes de opinião a sacrificarem os jornalistas da imprensa pública, pergunto-me se eles têm consciência do que dizem. Os jornalistas dos órgãos públicos não são eles próprios donos da sua autonomia(…) a TPA e a TV Zimbo são órgãos de natureza pública e claramente a constituição é uma lei à qual não se opõe qualquer outra lei (…)”.

No mesmo dia, 14, e sob o título Teste ao Poder Judicial, escrevemos aqui que “a cobertura de manifestações da UNITA ou fazer entrevistas aos seus líderes não resulta da boa ou má vontade, da boa ou má disposição dos administradores da TPA ou da Zimbo. É uma imposição legal. A alínea c) do artigo 69º da Lei de Imprensa (Obrigações específicas do operador concessionário do serviço público de televisão) dispõe: ”Garantir a cobertura noticiosa dos principais acontecimentos nacionais e internacionais”. E mais: “A alínea g) do mesmo artigo inclui entre as obrigações do operador do serviço público de televisão “garantir o exercício dos direitos de antena, de resposta e de réplica política, nos termos constitucionais e legalmente previstos”.

E também: “(…) se a UNITA convocar os seus direitos constitucionalmente protegidos, TPA e Zimbo serão obrigadas a engolir o que tão rudemente expeliram”.

No dia 21, e recordando que a prestação positiva por parte dos órgãos de comunicação  social pública e privada “não é uma faculdade”, KB Gala escreveu o que muitos só dizem em surdina: “Infelizmente, no topo do comando do sistema de comunicação social do país (parece) que discordam da Constituição”.  

Estando claramente identificada a origem da mão que bate e se esconde, dá dó ver e ouvir de aduladores profissionais, como aqueles a quem, nas noites de domingo, a TV Zimbo concede generosos tempos de antena, loas ao Titular do Poder Executivo por haver “aconselhado” a que as duas televisões se sentassem à mesa com a UNITA para pôr fim ao que ele chamou de “guerra de comunicados”.

Mas, mais doloroso ainda é que o Titular do Poder Executivo se sinta embevecido quando os bajuladores profissionais o colocam no pedestal de grande estratega, grande visionário, perante quem toda a Nação angolana e, sobretudo a UNITA, se deveriam ajoelhar em rezas de agradecimento e louvor por haver autorizado as televisões públicas a fazer aquilo a que estão constitucionalmente obrigadas.

O Artigo 23 º da Constituição da República de Angola (Princípio da igualdade) dispõe que: 1) “Todos são iguais perante a Constituição e a lei”; 2) “Ninguém pode ser prejudicado, privilegiado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da sua ascendência, sexo, raça, etnia, cor, deficiência, língua, local de nascimento, religião, convicções políticas, ideológicas ou filosóficas, grau de instrução, condição económica ou social ou profissão”.

Não havendo, na disposição supra, qualquer carta branca ao Titular do Poder Executivo para violar a Constituição, devem ser considerados, no mínimo, como patéticos os exercícios laudatórios a que os dois comentaristas da Zimbo se entregam alegremente todos os domingos.

É da experiência da humanidade que todos os ditadores começam com o culto à sua pessoa.

Pode ser infeliz coincidência, mas nos últimos dias tem havido uma sucessão de acontecimentos reveladores de que o Presidente João Lourenço não se incomoda nada com o culto à sua pessoa.

 Não há muitas semanas, o MPLA  felicitou o seu líder e Presidente da República pela sábia e clarividente iniciativa de revisão constitucional, mesmo que, na prática, ela se tenha traduzido num simples baralhar e redistribuição de cartas. 

No dia aos 10 de Setembro, o Bureau Político do MPLA  congratulou-se “com a decisão do Presidente da República de solicitar à Assembleia Nacional a reapreciação de algumas matérias da Lei de Alteração à Lei Orgânica sobre as Eleições Gerais, no sentido de reforçar os instrumentos que garantam uma maior igualdade entre os concorrentes, a sã concorrência na disputa político-eleitoral e a lisura e verdade eleitoral”. Lei que, como sabemos, foi exclusivamente votada pela bancada do MPLA na Assembleia Nacional.

Há pouco mais de uma semana, o secretariado do Bureau Político do MPLA saudou “a iniciativa do Presidente da República”,  congratulou-se com o “processo de auscultação dos cidadãos e da sociedade civil sobre a divisão política e administrativa, que visa a promoção do desenvolvimento harmonioso de Angola (…)” 

Portanto, aos poucos, o MPLA, enquanto instituição, enquanto marca nacional,  vai se eclipsando, emergindo, no seu lugar, o líder João Lourenço, em torno de quem tudo gira.

Aos poucos, Angola volta a geminar-se com a Coreia do Norte. 

 Como se sabe, naquele país até as árvores não se atrevem a crescer sem antes serem tocadas pela mão do grande líder. 

Por esse andar, não tarda, teremos de volta a clarividência do líder atravessada nas nossas vidas e ser-nos-á, novamente impingido, que sem o “farol” do líder jamais nos poderemos realizar como seres racionais.

Não é, pois, sem razão, que aqueles dois indivíduos deram a César o que é de César, ou seja, atribuíram ao Presidente da República a “sábia decisão” de autorizar que a TPA e a TV Zimbo se conformem com a Constituição e a Lei. 

Como ensina a milenar sabedoria chinesa, toda a grande caminhada começa com um passo.

E Angola já pode ter dado mais do que um passo.

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