Os dilemas do MPLA

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No artigo que publicou esta segunda-feira, 1, no Jornal de Angola, sob o título As candidaturas no MPLA, Ismael Mateus toma como anormal que, “com tantos anos de desgaste político, os primeiros secretários não podem reunir toda essa unanimidade interna”. 

O analista refere-se à reeleição de todos os 18 primeiros secretários provinciais do MPLA. 

Não havendo esse consenso e unanimidade à volta dos líderes provinciais, deve ser assumido haver circunstâncias objectivas e subjectivas que impedem, condicionar ou “atemorizam” os militantes a apresentar candidaturas (…) O silêncio dos militantes e retracção de eventuais candidatos  (…) transmite a percepção de absoluta normalidade, quando, na verdade, algo está errado. Acreditar que nas 18 províncias do país não existe ninguém com competência e ambição política para pretender ser primeiro secretário provincial do partido é absurdo e não vemos nenhuma razão lógica para a direcção do MPLA acreditar nessa pseudo-realidade. Há, obviamente, algo que constrange os ‘atrevidos’ a avançar e adia o pleno exercício das múltiplas candidaturas no MPLA”.

Sim, há algo de anormal na reeleição de todos os dirigentes provinciais do MPLA.

Como os portugueses diriam, “não bate a bota com a perdigota”, o que traduzido por miúdos significa que  certa coisa não bate certo com outra. 

Recorrentemente, escapam para o domínio público casos que expõem a impopularidade de quase todos os governadores provinciais, todos eles líderes locais do MPLA.

Em Malange, no Kwanza Sul, na Lunda Norte são frequentes os relatos que dão conta do fastio das populações para com os seus governadores.

Todos os militantes do MPLA em Malange precisariam estar sob forte efeito da chamada água do chefe para descobrirem, no longo consulado de Kwata Kanawa, realizações que justifiquem a sua continuação à testa da província. O mesmo seria necessário com os militantes da Lunda Norte.

No Kwanza Sul, os militantes não podem ser tão masoquistas ao ponto de renovarem a confiança num governador que lhes disse que a poeira que atormenta diariamente a cidade do Sumbe só seria afastada depois de o MPLA deixar o poder.

Sim, alguma coisa não bate certo.

Nenhuma lógica sustenta a ideia, aparentemente aceite por toda a direcção do MPLA, de que todos os seus primeiros secretários provinciais são fenómenos de popularidade.

No sábado, o presidente do MPLA saudou a reeleição de Bento Bento. Mas é muito duvidoso que a nata dos militantes do MPLA se reveja no discurso demagógico, populista e, muitas vezes, mal estruturado do líder reeleito.

Recentemente, por ocasião das conferências distritais do Nova Vida e do Kilamba vieram a público vídeos de militantes expondo descontentamento pela forma como foram afastados ou preteridos na corrida eleitoral.

No Kwanza Sul, Fernando Raimundo Júnior, membro do Comité Central, impugnou as duas candidaturas ao cargo de primeiro secretário provincial.

Não sendo seguramente pioneiro, Fernando Júnior é, porém, o primeiro membro do Comité Central que destapa publicamente as anomalias que envolvem os processos electivos no MPLA.

Em carta dirigida à Sub-Comissão de Candidaturas da Comissão Nacional Preparatória do VIII Congresso do MPLA, Fernando Júnior diz desconhecer a instância que fez de Job Capapinha candidato único à reeleição para o cargo de primeiro secretário provincial, já que o Comité Provincial “remeteu à entidade superior competente, para validação”, a sua candidatura bem como a do primeiro secretário cessante “em igualdade de circunstância”.

No Kuando Kubango, o governador Júlio Bessa foi claramente travado pelas bases.

A nebulosidade que envolve as circunstâncias que, do nada, fizeram de Job Capapinha candidato único no Kwanza Sul, são as mesmas que cercam a corrida à liderança nacional do MPLA.

António Venâncio, o militante que entende exercitar o seu direito de eleger e ser eleito, está praticamente a ser tratado como inimigo a abater.

As instâncias do MPLA, a todos os níveis, tratam o propósito do militante António Venâncio como inadmissível desafio à ordem estabelecida.

Por ser inédito no percurso do MPLA pós-independência, o desafio de António Venâncio deveria, até, suscitar a atenção e curiosidade da imprensa pública. Porém, não é isso o que acontece. Da comunicação social Venâncio está a ter o mesmo tratamento que o MPLA reserva aos seus inimigos de sangue. António Venâncio e Adalberto Costa Júnior são tratados no mesmo plano.

A ruidosa manifestação de apoio a João Lourenço que o Comité Provincial do MPLA promoveu há duas semanas no Rangel, bairro em que nasceu e cresceu, teve por claro objectivo a desmoralização e a humilhação de António Venâncio.

Há uma semana, Venâncio relatou ao Conversas EntreCruzadas da rádio MFM obstáculos que se supunham impensáveis no percurso de um militante do MPLA que se propõe disputar a liderança do partido.

Depois da amarga experiência por que tem passado, só mesmo a disciplina partidária ou uma outra razão qualquer que escape à própria razão impedirá António Venâncio de impugnar o VIII Congresso Ordinário do MPLA.

Aliás, todos os militantes do MPLA comprometidos com a ética, a isonomia e a legalidade deveriam impugnar esse congresso.

O Caderno de Documentos para a Preparação do VIII Congresso do MPLA estabelece, no seu VIII Capítulo que:

No decurso orgânico do VIII Congresso Ordinário deverá ser permitida a apresentação de candidaturas múltiplas. No entanto, só deverão ser admitidas à eleição para os órgãos singulares o limite de até duas candidaturas, a aprovar em última instância pelo respectivo Comité cessante”.

Por órgãos singulares entende-se presidente e primeiros secretários.

Ora, à luz dessa norma, ao militante do MPLA não basta reunir as condições estatutárias que o habilitem a concorrer a qualquer órgão singular. É condição fundamental que seja um dos dois indicados por uma estrutura cessante.

Como a direcção do MPLA já escolheu o seu candidato, na pessoa de João Lourenço, torna-se evidente que a candidatura de António Venâncio nem para animar a festa serve. Por isso é que ele encontra as portas todas hermeticamente fechadas.

Na realidade, João Lourenço não concorre com ninguém.

Um partido que limita a dois o número de pretendentes a um cargo, no limite até contende com a própria Constituição do país, a qual escancara as candidaturas aos cargos elegíveis, entre os quais o de presidente da República, a todos os cidadãos que preencham os requisitos legalmente estabelecidos.

No texto que tomamos como mote, Ismael Mateus refere que “o pulsar da sua (MPLA) democracia interna tem reflexos sobre os avanços e retrocessos da democracia do país”.

Um partido que não se acostuma à democracia interna tem óbvias e insanáveis dificuldades de aceitar a democracia no país.

A um partido que limita a dois a disputa aos seus cargos de liderança faz óbvia confusão a multiplicidade de organizações políticas e de outra natureza no país.

O MPLA esforça-se por pregar um discurso de democracia e abertura internas. Mas os seus documentos orientadores contrariam-no. 

O MPLA dos dias de hoje continua amarrados aos preceitos com que foi refundado em 1977, sob o olhar silencioso de Lenine. É um partido amarrado ao passado.

Os militantes sérios, honestos, patriotas, que os há em enorme quantidade, deveriam aproveitar o VIII congresso para desamarrar o MPLA do seu passado de partido marxista-leninista com forte pendor ditatorial.

O MPLA vive claramente um dilema. Por um lado tem de acompanhar os ventos dos tempos modernos – daí a admissão de candidaturas múltiplas – mas, por outro, está amarrado à velha e consistente prática de partido único, domesticado para obedecer a uma só voz.

Sem a sua democratização interna, o MPLA nunca se constituirá num factor de impulso ao progresso de Angola.