A mulher como carne de canhão

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Em qualquer país civilizado, homens e mulheres, sobretudo essas, teriam abandonado o VIII Congresso do MPLA após a afirmação de João Lourenço de que doravante quem quiser ganhar ao MPLA “tem de passar por cima das mulheres”.

Com aquela afirmação, João Lourenço confirmou o que muitos já sabiam, mas poucos ousam dizer: a abrupta “paridade” que está a promover, quer no MPLA quanto no aparelho de Estado, não tem nada a ver com o reconhecimento do mérito da mulher e nem com a sua discriminação. João Lourenço usa as mulheres como escudo contra alegados ataques dos seus adversários políticos e da sociedade que, por ironia, é composta, maioritariamente, por mulheres. 

Impregnada de misoginia, a afirmação expôs um homem que explora, em proveito próprio, as gritantes dificuldades por que passam a generalidade das mulheres angolanas. 

Agora ficou claro que ao MPLA e ao seu presidente vale tudo, incluindo a coisificação das nossas mães, esposas, irmãs e filhas.

Agora ficou claro que quando coloca no Comité Central do MPLA mulheres em número superior ao dos homens, João Lourenço não está a reconhecer o mérito, não está a compensar o saber; está a elevar o muro da sua própria protecção. Não são as mulheres que conquistaram o seu espaço pela luta, parece que é o presidente que faz o favor de promove-las  e, infelizmente, para uma única função: defende-lo, essencialmente, contra os seus adversários internos. . 

Quando vemos João Lourenço a colocar no Bureau Político 50 mulheres, percebemos que não o faz movido pelo imperativo de promover a paridade de género. Fá-lo, essencialmente, porque precisa de uma muralha contra homens de barba rija – cada vez mais raros, infelizmente – que lhe poderiam desencorajar ou rejeitar os (maus) rumos que escolheu para o partido e o país.

Fica agora claro que João Lourenço “investe” nas mulheres para que o seu grito estridente se sobreponha à crítica, que não tolera, à observação, que não admite, à correcção, que não aceita. Querendo ser “moderno”, o presidente acaba por reproduzir o cliché que a sociedade tem sobre as mulheres. 

Se o MPLA fosse um partido aberto e, de facto, democrático, provavelmente seriam as mulheres que promoveriam os homens à “paridade”, sendo elas a maioria e, felizmente, não só em quantidade. 

Totalmente dominado pela complexo de macho, João Lourenço por certo nem percebeu as várias interpretações a que a sua afirmação se pode prestar.

A expressão usual é “passar por cima dos nossos cadáveres”. Passar “por cima das mulheres” pode prestar-se a outras leituras.

Desde há muitos anos que João Lourenço integra a cúpula do MPLA. João Lourenço foi secretário-geral do mesmo MPLA que sempre tratou a mulher como um ser inferior. Um exemplo: adjunta de Bornito de Sousa nos momentos mais difíceis da afirmação da JMPLA, Ângela Bragança chegou ao Comité Central já quase na terceira idade, já o seu coetâneo lá se encontrava há anos.

Muito tardiamente, mas Ângela Bragança ainda conseguiu “chegar lá”. Mas muitas mulheres, com provas dadas, ficaram pelo caminho, sem terem sido incluídas na cúpula do MPLA.

Repete-se: não é a perspectiva de João Lourenço que mudou subitamente. O que se tornou premente para ele é erigir um muro para se resguardar de críticas e até mesmo da oposição de seus próprios camaradas de partido.

Em pleno século XXI, é vergonhoso, é um retrocesso que o género sexual seja determinante para a ascensão política.

Nos países nórdicos, onde a mulher tem papel muito activo na política activa, não há homens?

Com filhos por sustentar, maridos mortos ou desempregados, é sobre a mulher angolana que recai a factura mais pesada das erráticas políticas públicas.

Por isso, muitas delas tendem a tomar como magnânimo qualquer gesto do presidente do MPLA, por mais banal que seja.

Nenhuma pessoa avisada associará a reputada penalista Luzia Sebastião à misoginia. O mesmo se passará com Rui Verde, docente da Universidade Autónoma de Lisboa e articulista do site Maka Angola.

Ambos, no entanto, se opuseram à nomeação de Laurinda Cardoso para presidente do Tribunal Constitucional. Luzia Sebastião disse que faltava à nomeada traquejo – nomeadamente percurso académico e profissional para o exercício de tão elevado posto. Para Rui Verde, o maior “perigo” associado à nomeação de Laurinda Cardoso era o “hábito de obediência ao Presidente da República”.

Menos de quatro meses depois da sua nomeação, tanto as reservas de Luzia Sebastião quanto os temores de Rui Verde estão plenamente confirmados.

Na linguagem jocosa de alguns jovens angolanos, o Tribunal Constitucional é hoje uma “cantina” do MPLA. E isso, repete-se, nada tem a ver com o género sexual de quem o chefia.

No Brasil, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal ( a mais alta corte do país) é presidido rotativamente e frequentes vezes a presidência cabe à uma mulher. Nunca, porém, constou que essa circunstância fizesse do STF um boteco do poder político.

O que aqui se está a defender é que as militantes do MPLA, muitas delas com sólida formação académica e técnica, não deveriam calar a sua indignação perante a afirmação insultuoso de que “quem se meter com o MPLA tem de passar primeiro por cima das mulheres, o que não é fácil porque, quem passar por cima das mulheres, estará a passar por cima das nossas mães”.

As militantes do MPLA deveriam indignar-se com a sugestão de que são carne de canhão.

E, já agora e a título de curiosidade, uma pergunta: as mulheres que não militam no MPLA não são elas também “nossas mães”?