Quando a Lei também pode matar

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A Lei angolana estabelece que passam à reforma pessoas com 60 anos de idade ou com 35 anos de trabalho efectivo descontados para o Instituto Nacional de Segurança Nacional (INSS). Por isso, quando se efectiva esse tempo, os sistemas informáticos dos sectores de recursos humanos das empresas públicas e ministérios dão o sinal de alerta. Na verdade, em regra, o sinal é dado com um ano de antecedência, de modo a que o futuro pensionista prepare a respectiva saída.

Em face disso, são vários os trabalhadores relativamente novos (em termos de idade, é claro) que se veem profissionalmente inactivos de um momento para o outro. Há também casos de empregados empurrados à força para a reforma antecipada. Parte do resultado é um “exército” de força de trabalho com inigualável experiência fora do mercado de trabalho. Muitas dessas pessoas têm menos de 60 anos de idade.

Dura lex, sed lex. Ou seja, independentemente do absurdo da Lei, o seu cumprimento é obrigatório. Sendo assim, a Lei é aplicada de forma indistinta, sem excepções. E é assim que deve ser. De outro modo, estaríamos diante de uma flagrante violação.

No final do ano passado, o secretário de Estado para a Reforma do Estado anunciou a possibilidade de o Executivo alargar a idade limite de acesso ao sector público de 35 para 45 anos de idade. Mas não houve qualquer menção à possibilidade da extensão da aposentação por idade. Antes, em Novembro de 2020 um decreto do PR determinou que têm também direito à reforma antecipada os funcionários que tenham 55 anos de idade, no mínimo, e 30 anos de serviço efectivo.

Se por um lado a perspectiva do aumento do limite de idade para ingresso no sector público é plausível, o mesmo já não se pode dizer em relação ao abaixamento de idade de reforma, algo que contraria a tendência mundial. Apesar de a OMS considerar idoso alguém com 60 anos ou mais, hoje a disposição em muitos países, principalmente desenvolvidos, é aumentar a idade de reforma. Portugal, por exemplo, onde Angola copia a maior parte das suas leis há um tempo que indicou os 66 anos e seis meses como idade de reforma.  

A Lei angolana nesse sentido é, no mínimo, irracional porque junta no mesmo saco todos os profissionais, sem excepções. As leis, mesmo quando são copiadas, devem sempre ser feitas à medida das especificidades dos sujeitos sobre quem recaem. E no caso concreto de Angola, ainda mais por não dispor de mão de obra qualificada em abundância. Atentemos, por exemplo, ao caso dos médicos. O país tem dos baixos rácios do Mundo de médicos por habitantes. É um médico para cada 7.245 cidadãos. O indicador sugerido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) é de um médico para cada mil habitantes. Por isso, Angola está ao mesmo nível que Haiti, Sudão, Guiné Equatorial, Cambodja, Mauritânia, Mali, Guiné Bissau, Burundi, Burkina-Faso, Níger, Chade, Somália… 

Ainda assim, em finais de 2019 quase 100 médicos dos Serviços de Saúde Militar foram passados à reforma por idade, alguns, e tempo de trabalho, outros. Desses médicos, muitos haviam regressado dos respectivos cursos de especialidade no estrangeiro havia meia dúzia de anos. No Serviço Nacional de Saúde aconteceu a mesma coisa. Nesses profissionais, o governo investiu apreciáveis recursos financeiros na respectiva formação específica, no estrangeiro. Entretanto, há hospitais pelo país afora sem médicos de determinadas especialidades, alguns dos quais atirados para o ócio por uma Lei absurda.

Estudos diversos convergem para a percepção de que os médicos atingem o auge da carreira e o alcance do reconhecimento, mais ou menos entre os 50 e os 60 anos de idade. Geralmente, esta costuma ser também a sua fase mais produtiva. Estranhamente, é nesse intervalo de tempo em que em Angola os médicos são mandados para a casa por força de uma Lei, que vem matandogente por não dispor de assistência médica especializada, entretanto, desaproveitada. 

Em Portugal, por exemplo, onde membros da elite política angolana buscam com mais frequência assistência médica de qualidade – foram incapazes de proporcionar isso aos seus concidadãos –, a maioria dos médicos do sector público tem mais de50 anose aidade mais representativa é 63. Mais: quando vão “desencravar suas unhas” a Portugal, ao Brasil, a Singapura ou ao raio que o partasão geralmente atendidos por médicos acima dos 60 anos. E, seguramente, apesar de estarem investidos do direito de escolherem quem os assista, governantes e políticos angolanos não costumam pedir profissionais mais jovens. Pelo contrário, nas mais da vezes sentem-se confortados por estarem diante de alguém com conhecimento acumulado e experiência profissional tranquilizadora.

Incompreensível em tudo isso é que as autoridades angolanas mantêm os mesmos parâmetros de há mais de há mais de meio século. Quando em 1962 o sistema da previdência de Portugal foi reformulado [Angola era província lusitana], a Lei estabelecia 60 anos como idade a partir da qual se podia requerer a reforma. O critério manteve-se quando, em 1990 foi promulgada a Lei 18/90, de 27 de Outubro, a primeira norma a estabelecer o sistema de segurança social do país.

Em 1962 a esperança média de vida do angolano era de 38,11 anos, ao passo que em 1990 era 45,3. De acordo com o relatório de desenvolvimento humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em 2019 a expectativa média de vida de quem nasceu em Angola era de 60,8. Esta cifra representa um crescimento de 15,5 anos desde 1990. Ademais, na actualidade houve substancial melhoria das condições sanitárias, de um modo geral, e a medicina registou avanços espantosamente significativos. De modo que, a vida de um sexagenário de hoje não é, nem por sombras, igual a do seu correspondente de há 60 ou 30 anos. É diferente para melhor, pelo simples facto de dispor de mais recursos que lhe perimitem ter plena saúde física e mental.

Em Angola, contudo, a idade de reforma continua estática. Mais do que isso, a aposentadoria é compulsiva, pois, por mais que alguém queira, não pode continuar a trabalhar, a menos que seja em regime de contrato, que só pode ser renovado duas vezes. Ou seja, chegado aos 60 anos, a porta da rua passa a ser a serventia da casa. Em países como Dinamarca, Holanda, Finlândia, Itáliae até Portugal – não são, obviamente, de Terceiro Mundo como Angola –, a idade de reformaéajustada à evolução da esperança média de vida.

Para já, as consequências dessa política inepta de reforma tem contribuído grandemente para a sedimentação dacultura dodesmerecimento do idoso no mercado de trabalho. Isto, em contraposição a uma excessiva valorização da juventude por geralmente apresentar maiorfacilidade noapreendizado denovas tecnologias, apesar de menos experiente. Num futuro não muito distante, porém, as consequências podem ser bem mais gravosas. Uma das quais é a insustentabilidade do sistema de segurança social, levando-o ao colapso, em razão das milhões de bocas que terá para alimentar.

Portanto, o copy past legislativo sem ter em conta as especificidades do país vai continuar a matar gente por falta de médicos, empurrados compulsivamente para fora do sistema de saúde. Este é só um exemplo. A lista de potenciais danos é quilométrica.