O fim de mais uma miragem

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Há pouco mais de um mês, os produtores nacionais de sal reclamavam do facto de não terem sido considerados na composição do cabaz da Reserva Alimentar Estratégica.

No seu número 294, de 01 de Fevereiro, o semanário Valor Económico revelou que o Executivo incluiu o sal de cozinha entre os produtos que importa para a Reserva Estratégica Alimentar.

Apesar de possuírem grandes quantidades de sal, que garantem ser suficientes para cobrir as necessidades domésticas, os produtores nacionais queixam-se de nunca haverem sido consultados.

Ao Valor Económico, o presidente da Associação dos Produtores e Transportadores de Sal de Angola, Totas Garrido, disse que “nunca recebemos nenhum convite do Governo para saber a nossa posição em relação à REA”.

Um dos maiores, se não o maior empresário do sector, Adérito Areias garante ter disponíveis mais de 50 toneladas de sal, quase o dobro das necessidades do Governo, mas, apesar disso, nunca foi contactado.

A melhor forma de se ajudar a economia local é o Governo comprar o sal dos produtores nacionais. Se comprar localmente, vai potenciar os produtores”, lembrou Totas Garrido.

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Quase um mês depois da comovente reclamação dos produtores nacionais, a informação, vinda a público no último fim de semana, de que um navio de grandes dimensões atracou no Porto de Luanda com imensas quantidades de sal é a prova provada de que:

a)   A generalidade dos angolanos deveriam estar sob efeitos de poderosos entorpecentes quando no dia 26 de Setembro de 2017 julgaram ouvir de João Lourenço, no discurso que proferiu após ser investido na função de Presidente da República, a promessa de que o papel do Estado na economia tenderia a centrar-se na regulação e fiscalização, com o que se impulsionaria a iniciativa privada, “levando-a a ocupar o espaço que merece e lhe compete realizar”.

b)   Estavam tomados por sonhos róseos aqueles angolanos que juram ter ouvido o Presidente da República dizer, quase aos gritos, que não era surdo nem cego. “Nós não somos surdos (…) e não gostei nada” – é o que muitos angolanos asseguram ter ouvido de João Lourenço no encerramento do VII Congresso do MPLA perante uma possessa e ruidosa falange de adeptos. Ao que dizem, a deselegante reacção teria como destinatária a cidadã Filomena Oliveira, que ousou criticar o que (mais tarde veio a ser confirmada) precipitada decisão de implantar o IVA em Angola.

Nos países em que a lei é igual para todos os cidadãos, a Procuradoria Geral da República intentaria uma acção judicial contra os jornalistas que, no dia 6 de Janeiro passado, atribuíram ao Presidente da República a afirmação de que “ (…) é obrigação do Executivo criar condições no sentido de, a par dessas empresas gigantes, que vêm de fora, termos, também, empresas nacionais privadas (…)” fortes. 

É duro dizê-lo, mas os angolanos já deveriam despertar do torpor. Aquele Presidente da República do dia 26 de Setembro de 2017, cujo discurso lhes encheu de esperança e criou alvoroço no mundo, com as embaixadas angolanas apinhadas de estrangeiros que se digladiavam por vistos de entrada em Angola para ajudar o país a reerguer-se dos escombros a que ficou reduzido depois de décadas de guerra, já não existe mais. A sua existência foi efêmera.

Aquele Presidente da República que ressuscitou as esperanças dos angolanos foi sequestrado, há muito, pelas mesmíssima forças que mantém Angola no atraso e na miséria em que tem vegetado desde que é país independente, já lá vão 47 anos. 

É doloroso dizê-lo, mas aquele Presidente da República que prometeu sobrepor o interesse nacional aos “interesses particulares ou de grupo” deixou-se aprisionar pelos mesmos marimbondos e caranguejos que era suposto combater sem tréguas. 

O “entorno” do Presidente da República é constituído pelos mesmos nomes e rostos que levaram Angola à decadência económica e moral em que hoje vivemos.  

No “cafrique” em que entrou voluntariamente, muito provavelmente o Presidente não só vê o país em tons muito diferentes do que é na realidade, como já não guarda memória nenhuma das promessas e compromissos feitos naquele dia 26 de Setembro de 2017.

É constrangedor, mas o Presidente da República é hoje disputado como um troféu pelas antagónicas facções de que, voluntariamente, se fez rodear.  

O “muro de protecção” ao Presidente da República que os chico-espertos se esforçam por erigir nas redes sociais não tem por finalidade a defesa do interesse nacional.   

Os francos atiradores digitais entretêm o país com miudezas irrelevantes enquanto os seus mandantes aperfeiçoam os estratagemas que lhes garantem o saque continuado do país. 

O país adulto tem de procurar entender as razões por que o Presidente da República se rendeu voluntariamente a marimbondos e caranguejos.

O país adulto tem de se preocupar com o paradeiro daquele homem que prometeu resgatar o “sentimento de confiança nas instituições do Estado, porque os cidadãos precisam de acreditar que ninguém é rico ou poderoso demais para se furtar a ser punido”.

O país adulto olha para o julgamento do chamado “caso Lussati” e no banco dos réus não enxerga nenhum “poderoso”. Não há um único general entre aqueles que, por anos a fio, transformaram a Casa Militar do Presidente da República numa segura e insuspeita toca de ladrões profissionais.

A importação de sal demonstra que, mais uma vez, a gangue que capturou o Estado manda para aquele sítio os milhares de angolanos que tiram os seus sofríveis proventos nas salineiras nacionais. Mais uma vez triunfaram aqueles que sufocaram até à morte o sonho de milhões de angolanos de se realizarem no seu país, produzindo, gerando riquezas e empregos, enfim, ajudando “Angola a crescer e a transformar-se num país onde valha a pena viver”, como muitos angolanos juram ter ouvido naquele dia de Setembro de 2017. 

Os grupos e grupinhos que incluíram o sal importado no cabaz da REA são os mesmos que se opõem à reabilitação de estradas para que o tomate, a cebola, o abacate, a ginguba, a mandioca, a ginguenga, o mel e muitos outros produtos produzidos no Uíge, Zaire, Malange, Kwanza Sul, Kuando Kubango ou Moxico  não cheguem aos grandes centros de consumo.

Essa gente não quer nenhum corte radical às importações, mesmo de produtos em que Angola já produz e pode alcançar facilmente a auto-suficiência.

Para essa gente, a diversificação de economia é apenas um expediente retórico que sabem soar bem a massas acríticas.

Nas suas deslocações ao interior do país, o Presidente da República não deveria contentar-se com as audiências que concede a cidadãos criteriosamente seleccionados e industriados pelos Serviços de Informação sobre o que devem ou não falar. Deveria fazer visitas relâmpagos a fazendas e falar, sem intermediação de espécie alguma, com os fazendeiros, os camponeses.

Em Luanda, os titulares dos distintos departamentos ministeriais deveriam, com muita regularidade, abandonar o conforto dos seus luxuosos gabinetes para constatar in situ o que se produz na cintura verde da capital do país e identificar os meios de potenciação dessa produção.  

Infelizmente para os angolanos, já cá não anda aquele que um certo dia garantiu não ser surdo.

Por isso, reclamações como as dos produtores nacionais de sal e outras continuarão a não ser atendidas. 

Paradoxalmente, a chegada do navio com toneladas de sal também tem um lado positivo:  põe fim a mais uma miragem.   

Por causa da invasão russa à Ucrânia, os preços do milho e do trigo, de que os dois países são os maiores produtores, já estão lá em cima.

Dependente do exterior, Angola também vai ser arrastada por essa tresloucada subida de preços. Se, governada por gente séria, Angola colheria frutos da escassez daqueles cereais. Porque terras férteis e água tem de sobra. 

Com governantes comprometidos com o país, o encarecimento de alimentos que ocorrerá muitos países do mundo chegaria a Angola apenas pelos noticiários. Mas, lamentavelmente, senti-la-emos duramente nos “ossos” quando os preços do trigo, milho, enfim, de tudo o que importamos subirem. 

Com governantes sérios, a actual alta do preço do petróleo serviria, também, para alavancar os sectores da economia em que Angola pode alcançar rapidamente a auto-suficiência. E a produção acelerada de cereais como milho, trigo e soja não deveria carecer mais de quaisquer estudos.

Mas, como se sabe, as receitas extraordinárias do petróleo atendem a outras farras, nomeadamente a eleitoreira.

Estamos, sem dúvida, diante de uma boa oportunidade para os franco atiradores digitais continuarem a “ruminar” ruidosamente o empenho do Executivo na diversificação da economia nacional.

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