É tudo uma questão de mentalidade (1)

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Angola figura, infelizmente, nos piores lugares de rankings como o da percepção da corrupção, da mortalidade infantil, do acesso a água potável, da assistência médica e medicamentosa e doutros. Décadas de ruinosa governação levaram o país ao caos, tornando-se motivo de risota de diferentes povos, cujos países governantes angolanos demandam para obter serviços básicos como saúde ou ensino de qualidade. Hoje, a esmagadora maioria dos dirigentes políticos tem os filhos a estudar no estrangeiro. Isto quando não têm a família toda lá, sustentada quase sempre com o dinheiro público.

Além dos governantes há outra classe de servidores públicos que age da mesma forma. São os secretários-gerais dos ministérios. Em regra, jovens, levam vida faustosa, muito acima das suas posses e, em muitos casos, enquanto têm as famílias no estrangeiro, preferencialmente na antiga Metrópole, passeiam-se em Luanda com carros de alta cilindrada e frequentam os restaurantes mais caros da cidade. Nas noitadas, alguns se fazem acompanhar até de assistentes, cujo trabalho é preparar o charuto que vai acompanhar o sagrado cognac pós-refeição. É óbvio que seria injusto generalizar. Nesta classe há gente decente como, de resto, na governação.

Estes são comportamentos que se cristalizaram ao longo de décadas e torna-se difícil extirpá-los em pouco tempo. Do modo como se cimentaram na nossa sociedade, só uma mudança de mentalidades pode alterar o paradigma para tomar o caminho do decoro. Porque, sinceramente, não faz sentido alguém estar numa casa nocturna acompanhado de outra pessoa só para lhe preparar e acender charutos. Isto raia os terrenos da boçalidade.

Os “donos dos charutos” conduzem automóveis, cujas algibeiras não podem comprar. São adquiridos com dinheiro do contribuinte, por se tratar de “carro de função”, ou com verba afanada na calada da noite ao cidadão honesto (ainda os há e muitos) e trabalhador. E o problema reside exactamente aqui. Apesar de todo o mundo saber da proveniência de grande parte do dinheiro que compra os luxos mais insultuosos aos angolanos, os salteadores de cofres públicos são quase adulados.

Inclusive nas relações familiares, sogros/sogras ou pais/mães fingem não saber que genros ou filhos tiraram o anti-palúdico de alguém, que na sequência encontrou a morte, para comprarem os automóveis com que se passeiam nas esburacadas estradas da urbe luandense. Rodovias que se quer merecem esses carros. Pelo contrário, são tratados como divindades, enquanto o indivíduo que trabalha de sol a sol é até chamado de “preguiçoso” porque não pode fazer um “agrado” adicional à família. Desafortunadamente, a ladroagem é “normalizada” pela sociedade e a honestidade é apatanhada e tratada com escárnio. Há, provavelmente, milhares de casos desses que ameaçam desestruturar ou já desestruturaram muitas famílias.

A situação é tão preocupante que larápios que foram julgados por mexerem no dinheiro de todos ou estão a contas com a Justiça têm solidariedade de franjas significativas da sociedade. É espantoso que esta é a “mesma” sociedade que verbera o macabro espectáculo de mortes evitáveis de crianças e mulheres que acontece às catadupas em unidades hospitalares de todo o país. Ao se compadecer do sofrimento de indivíduos que assaltaram dinheiro público parte da sociedade torna-se moralmente cúmplice dessas mortes, geralmente causadas por falta de meios relativamente baratos, como um soro ou um simples anti-alérgico. 

Os ladrões do erário cavaram a cova de muitos concidadãos. Promoveram de forma indirecta a prostituição e, consequentemente, a disseminação de doenças sexualmente transmissíveis. Fizeram muito mal aos seus próprios compatriotas, a quem muitas vezes negaram emprego para beneficiar expatriados só pela vaidade de ter um empregado com tez de pele mais clara. E, o que é gravíssimo, parecem pouco preocupados com isso. É lógico que assim seja, porque a sociedade, de um modo geral, “validou” com o silêncio ou com a omissão esses comportamentos infames. Na China ou em Singapura saberíamos qual seria o destino dessa gente. Iria, naturalmente, fazer companhia àqueles a quem empurraram para indigentes covas rasas. Fosse no Japão, após descobertos, os pandilheiros cortariam da própria carne. Ou seja, suicidar-se-iam. É uma questão cultural. Quase toda a sociedade tem responsabilidades na endemia em que se transformou a corrupção. Mas quem governa, no caso o MPLA, tem responsabilidades maiores. É preciso agir com mais firmeza para que não nasçam novas gerações de larápios. Não apenas usando a lei, mas também investindo imenso na Educação, porque é de pequeno que se torce o pepino, conforme nos ensina a sabedoria popular. Isto deve estar nos manuais escolares, já que em pleno século XXI regressar às práticas do tempo do “campo da revolução” configuraria verdadeiro retrocesso civilizacional. E o exemplo para a mudança de mentalidades deve começar de cima para que os de baixo sigam. Doutro modo, o país continuará perdido.