Em Março passado, Angola não só se absteve de condenar a invasão russa à Ucrânia como subestimou o seu impacto na economia mundial.
A Rússia invadiu a Ucrânia no dia 24 de Fevereiro.
Na Assembleia Geral das Nações Unidas, Angola esteve entre os 35 países que se abstiveram de condenar a agressão ao Direito Internacional praticada pela Rússia
Nos primeiros dias de Março e quando já emergiam os primeiros sinais de que a guerra que a Rússia levou à Ucrânia afectaria a produção mundial de cereais, nomeadamente de trigo, de que os dois países são os maiores produtores, o ministro angolano do Comércio e Indústria, Victor Fernandes, dizia, tranquilamente, que Angola não teria que se preocupar com o aumento da sua produção interna, uma vez que há países que o fazem por ela.
Perorando no Café CIPRA, uma montra das realizações do Governo em que muitos ministros não resistem à tentação ao auto-elogio e ao narcisismo, exercício que, não raras vezes, os leva a abordagens de matérias que não dominam, Victor Fernandes assegurou que “apesar da Rússia e da Ucrânia serem os maiores produtores (de cereais), essa classificação significa que há outros produtores, portanto o mundo não vai parar de produzir trigo”. Segundo ele, o mercado de cereais seria perturbado apenas temporariamente, após o que tudo voltaria à normalidade.
“(…) se a Rússia e a Ucrânia não produzem isso vai, obviamente, ter esse efeito de cascata de aumento de preços, mas depois, eventualmente vai estabilizar”.
De acordo com o ministro, “as autoridades angolanas já adivinhavam” a invasão Rússia à Ucrânia. Contudo, apesar desse conhecimento, as autoridades angolanas nada fizeram para proteger o país das consequências mundiais do conflito, nomeadamente da escalada de preços dos alimentos.
“Do ponto de vista da REA (Reserva Estratégica Alimentar) e olhando para aquilo que o conflito se traduz, o que vai acontecer é durante algum tempo uma variação para cima do preço do trigo, mas quando as fontes estiverem estáveis o preço vai estabilizar”, previu.
Menos de três meses depois das declarações do seu colega do Comércio e Indústria, o ministro da Agricultura e Pescas, António Assis, acaba de avisar que a crise mundial de cereais vai bater as portas de Angola a partir de Setembro.
Em recentes declarações à imprensa, ele admitiu que o país vai experimentar dias amargos em virtude da insuficiente produção interna de cereais.
“Nós em Angola, em relação aos cereais, só vamos começar a ter um pouco de alívio quando formos capazes de ultrapassar os dez milhões de toneladas. A partir do dia 15 de Setembro, nós vamos ter dificuldades de milho, isto só vai poder normalizar-se quando as nossas produções internas forem superiores às dez milhões de toneladas por ano”.
Victor Fernandes e António Assis são membros do mesmo Executivo. As diferentes abordagens que ambos fazem da crise mundial provocada pela agressão russa à vizinha Ucrânia instalam a dúvida no cidadão.
De um modo geral, os governantes angolanos não são bons em prever acontecimentos e antecipar-se aos seus efeitos.
Em 2008 e quando pelo mundo já eram evidentes os seus sinais, Manuel Júnior, o então super-ministro da Economia, disse que Angola estaria imune aos efeitos da crise do subprime, que rebentou nos Estados Unidos no ano anterior.
Passados pouco mais de 15 dias, o Presidente José Eduardo dos Santos assumiu publicamente que Angola começava a ser vergastada pela crise mundial.
Causada pela perda de valor de activos imobiliários, a crise do subprime arrastou a Europa e alastrou-se pelo mundo, provocando uma recessão global em 2009.
Apesar da humilhação pública, Manuel Júnior não colocou o seu lugar à disposição.
A produção mundial de cereais ressente-se severamente da guerra que a Rússia levou à Ucrânia. Nenhum país (ou países) preencheu o vazio.
Mesmo desmentido pelos factos, não é crível que o ministro do Comércio e Indústria venha a colocar o seu lugar à disposição do Titular do Poder Executivo.
Se o Presidente da República não estivesse rodeado de muitos vendedores de banha de cobra, nomeadamente aqueles que pregam que Angola não precisa de se inquietar com a produção de cereais porque outros países encarregar-se-ão de fazê-lo por nós, por certo que teria chegado mais cedo à constatação, agora feita no Luena, de que as terras agricultáveis do leste do país podem garantir a nossa auto-suficiência em grãos.
João Lourenço disse que o leste do país pode produzir mais do que diamantes, mel ou arroz.
Se Angola tem posto mãos à obra desde o começo da crise mundial da guerra na Ucrânua, a esta hora estaria não na iminência da falta de cereais, mas perto de colher os frutos da tranquilidade que a formiga constrói no verão enquanto a cigarra cantarola sem parar.
O alerta do ministro da Agricultura e Pescas, secundado pela constatação do Presidente da República de que Angola tem condições naturais para construir a sua auto-suficiência alimentar, confirma que mais vale despertar tarde do que continuar sob a ilusão, induzida pelo ministro do Comércio e Indústria, de que outros países trabalharão por nós.
A invasão russa à Ucrânia está a proporcionar a Angola receitas extraordinárias de petróleo. Parte desse dinheiro deveria ser, necessariamente, destinado a promover a produção interna de cereais e não somente para amortecer o efeito de cascata de aumento de preços nos mercados mundiais.
É que – e isso contraria a lógica de Victor Fernandes – o mercado de cereais não estabilizará tão cedo. Ou seja, já nada será como dantes.
Estima-se que mesmo que a Rússia cessasse de imediato a invasão, a Ucrânia precisaria, no mínimo, de uma década para regressar aos níveis de produção de cereais anteriores a Fevereiro.
E em uma década, como se sabe, acontece muita coisa, nomeadamente ou a morte do rei ou do macaco.
O que vai acontecer, a partir de Setembro, segundo as previsões do ministro da Agricultura e Pescas, será, apenas, o início da colheita das tempestades de enganos e equívocos que o Governo planta desde 1975.
A crise de cereais em Angola não começa com a guerra da Rússia contra a Ucrânia e nem se vai agudizar por causa dela. Angola não produz cereais em quantidade suficiente desde que é país independente.