Moscovo foi à sede do MPLA queixar-se do que o Presidente da República não quis ouvir de viva voz
Políticos e diplomatas são useiros e vezeiros no uso de eufemismos.
Dois depois de Angola se haver juntado a outros 143 países que condenaram a anexação de territórios ucranianos pela Rússia, o embaixador de Moscovo em Luanda, Vladimir Tararov, foi quinta-feira à sede do “Parido” para, segundo a imprensa oficial, abordar com a vice-presidente e o secretário das Relações Internacionais do MPLA “assuntos relativos ao reforço dos laços de amizade e fraternidade existentes entre os dois países”.
De acordo com a mesma fonte, o representante diplomático russo disse, na final da audiência, que felicitou a vice-presidente do MPLA pela vitória alcançada nas eleições de 24 de Agosto, o que, segundo palavras atribuídas a Tararov, “demonstrou que o Partido está no bom caminho”.
A Rússia, vale a pena recordar, foi o primeiro membro do Conselho de Segurança que reconheceu a vitória que a Comissão Nacional Eleitoral e o Tribunal Constitucional atribuíram ao MPLA.
A ida do embaixador Vladimir Tararov ao “Kremlin” angolano pode decorrer da percepção de que, para Moscovo, o seu reconhecimento das eleições do dia 24 de Agosto ainda não é do conhecimento da “Kremlin” angolano…
Mas, afastados os eufemismos com que o embaixador Tararov tentou encapotar os verdadeiros motivos da sua ida à sede do MPLA, tudo indica que ele foi buscar explicações para a brusca mudança de Angola em relação à guerra que Rússia leva a cabo contra a Ucrânia.

Tanto a vice-presidente do MPLA, Luísa Damião, menos versátil, quanto o secretário para as Relações Internacionais, que domina melhor a retórica, devem ter “gaguejado” para explicar ao representante de Putin a razão por que Angola se juntou aos 144 países que condenaram veementemente a anexação de territórios ucranianos.
Herdeira da antiga União Soviética, a Rússia reclama de Angola dívidas que vêm lá de trás, dos temos da luta de libertação nacional, em que a União Soviética e todos os seus satélites eram a vanguarda material e ideológica do MPLA.
Seguramente, no encontro de quinta-feira, Vladimir Tararov não deixou de recordar aos seus dois embaraçados interlocutores o papel decisivo dos “ Órgãos de Stalin” (entre nós mais conhecidos como “monacaxitos”) soviéticos nas grandes batalhas que precederam a proclamação da independência nacional, em Novembro de 1975.
Sem esses lançadores múltiplos de foguetes, habilmente manuseados por soldados cubanos, os exércitos zairense e sul-africano teriam certamente chegado a Luanda a tempo de impedir Agostinho Neto de proclamar, em nome do Comité Central do MPLA, a independência de Angola.
Anos depois, foram também caças soviéticos da gama MiG-19,21,29 e Sukhoi ( nas suas variadas versões) e tanques como o famoso T-72 que ajudaram a que a coligação FAPLA/ cubanos contivesse “nos limites” as reiteradas agressões sul-africanas.
Não se tratando de nenhuma ajuda desinteressada, como então se dizia, todo o armamento soviético fornecido a Angola teve um custo.
Espera-se, ao menos, que ao embaixador Tararov o agora “mucho nervioso” e agressivo Putin não tenha incumbido de exigir do Governo angolano o pronto e integral pagamento de todos atrasados…
A abstenção de Angola na resolução através da qual a Assembleia Geral condenou a invasão russa da Ucrânia, em Março, transmitiu a Moscovo a convicção de que o nosso país, como a Coreia do Norte, Síria, Bielorrússia, Cuba, Nicarágua e outros, era mero satélites na órbita da Rússia.
O livre trânsito então dado ao embaixador Tararov para, através da comunicação social pública, defender uma grave ofensa ao Direito Internacional, reforçaram no Putin e nos falcões que o rodeiam a certeza de que podiam dispor de Angola, como e quando quisessem.
A brusca viragem que o Presidente João Lourenço fez no dia 15 de Setembro, sem qualquer pisca prévio, deixou os russos boquiabertos.
Mas, depois do espanto inicial, ei-los agora em campo, em claro e evidente ajuste de contas com todos os que têm pendentes pendurados em Moscovo.
Aparentemente, Angola é um dos casos.
Seja qual for o preço a pagar, Angola deve estar ao lado do seu presidente, pelo menos no “que tange” a esse assunto.
O nosso próprio ordenamento jurídico impõe-nos o respeito à integridade territorial e à soberania de outros estados.
O Artigo 12º diz que a República de Angola respeita e aplica os princípios da Carta das Nações Unidas e estabelece relações de amizade e cooperação com todos os Estados e povos na base de princípios como respeito pela soberania e independência nacional, igualdade entre os Estados, solução pacífica dos conflitos e respeito dos direitos. Tudo o que a Rússia está a pisotear na Ucrânia.
Os russófonos e incondicionais angolanos de Putin podem espernear à vontade, mas Angola tomou uma decisão coerente com a sua própria Constituição.
A ironia é que o embaixador Tararov disse ter ido ao Kremlin também para convidar a vice-presidente do MPLA a participar, em Novembro, na cidade russa de Sochi, de uma conferência internacional sobre problemas globais de segurança e de paz para analisar a situação de instabilidade em diversos pontos do mundo.
Vladimir Tararov não esclareceu se o promotor da conferência, a Rússia, incluiu na agenda a instabilidade que criou na Ucrânia.
Agora, é interessante saber a resposta do MPLA a um convite que deveria ser dirigido ao Presidente da República ou, na indisponibilidade dele, à sua faz de conta vice-presidente, a quase desconhecida Esperança Costa.
Ao fim e ao cabo, o embaixador russo foi à sede dizer à vice-presidente do MPLA o que o Presidente da República não quis ouvir de viva voz.