Via expressa ao livre arbítrio

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 No dia 26 de Setembro de 2017, quando lhe conferia posse para o seu primeiro mandato, Rui Ferreira, presidente do Tribunal Constitucional, disse ao novo Presidente da República que “os limites, únicos, do poder que lhe foi conferido pelo povo são os que constam da Constituição da República e da Lei (…) A partir de hoje abre-se a seus pés (…) uma via expressa para fazer o que prometeu aos angolanos”.

Comovido e quase banhado em lágrimas, João Lourenço reagiu nos seguintes termos: “Para corresponder à grande expectativa criada em torno da minha eleição e a confiança renovada no MPLA, governarei usando todos os poderes que a Constituição e a força dos votos dos cidadãos expressos nas urnas me conferem.Neste novo ciclo político que hoje se inicia, legitimado nas urnas, a Constituição será a nossa bússola de orientação e as leis o nosso critério de decisão”.

Por iniciativa do Presidente da República, João Lourenço, em 2021 foram “enxertadas” algumas alterações na Constituição da República de Angola.

 Na sua versão original, o artigo 37.º da Constituição da República de Angola (Direito e limites da propriedade privada) tinha a seguinte redacção:

“1. A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão, nos termos da Constituição e da lei.

 2. O Estado respeita e protege a propriedade e demais direitos reais das pessoas singulares, colectivas e das comunidades locais, só sendo permitida a requisição civil temporária e a expropriação por utilidade pública, mediante justa e pronta indemnização, nos termos da Constituição e da lei. 

3. O pagamento da indemnização a que se refere o número anterior é condição de eficácia da expropriação”.

Com a “enxertia” de 2021, o mesmo artigo ganhou um quarto ponto, que torna passíveis de “apropriação pública, no todo ou em parte, bens móveis e participações sociais de pessoas individuais e colectivas privadas, quando, por motivos de interesse nacional, estejam em causa, nomeadamente, a segurança nacional, a segurança alimentar, a saúde pública, o sistema económico e financeiro, o fornecimento de bens ou a prestação de serviços essenciais”. 

Jogando dentro das “quatro linhas”, como diria o ora derrotado Jair Bolsonaro, ou usando todos os poderes que a Constituição lhe confere, como o próprio João Lourenço prometeu, através dos decretos números 256 e 257 e “nos termos das disposições conjugadas do n.º 4 do artigo 37.º, da alínea m) do artigo 120.º (Competências como Titular do Poder Executivo), do n.º 4 do artigo 125.º da Constituição de e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 11.º da Lei n.º 13/22 (Lei da Apropriação Pública), evocando o interesse estratégico da UNITEL e aludindo a pendengas judiciais, não transitadas em julgado, em que dois dos seus accionistas estariam envolvidos, o Presidente da República decretou a “apropriação, por via da nacionalização”, das participações sociais que a Vidatel Limited e Geni SA detinham na principal empresa de telefonia celular do país. 

Contudo e apesar da sua “colagem” à  Lei n.º 13/22, de 25 de Maio, os dois decretos presidenciais não dão como líquidas as indemnizações a que se referem os números 2.º e 3.º do artigo 37.º da Constituição Revista.

Os  n.ºs 1 e 2 do artigo 11.º da a Lei n.º 13/22 estabelecem que  o “direito ao pagamento de indemnização suspende-se quando estiverem em curso contra os anteriores titulares, directos ou indirectos, e relativamente aos bens apropriados, designadamente:

a)  Inquéritos administrativos;

b)  Processos cíveis e criminais em que o Estado ou outras entidades públicas sejam lesadas;

c)  Processos de responsabilidade por práticas lesivas de interesses patrimoniais de qualquer outra pessoa colectiva pública”.

 A referida lei estabelece, também, que em “qualquer caso, não é devido o direito à indemnização quando se prove, por sentença transitada em julgado, que o bem apropriado foi constituído de forma ilícita. Salvaguardando-se o direito à indemnização de terceiros de boa-fé”.

O instituto de apropriação por motivo de interesse nacional, consagrado na Constituição, é a tal via expressa que se abriu aos pés do Presidente da República na qual podem circular, livremente, a arbitrariedade, o subjectivismo, o capricho, a inveja ou o quero, mando e posso.

Depois do sucedido com as participações sociais da Vidatel e Geni na UNITEL, qualquer empresa privada, seja ela nacional ou estrangeira, pode estar sujeita à mesma sorte. .

Para o caso das empresas nacionais, coloca-se uma inevitável pergunta: quantos cidadãos, o próprio Presidente da República incluído, estão em condições de provar, com provas documentais irrefutáveis, a origem lícita do seu património? 

Em Dezembro de 2020, João Lourenço garantiu que as suas fazendas produziam grande parte dos alimentos servidos nos pratos dos jovens com quem se encontrou no Centro de Convenções de Talatona. A pergunta, recorrente: é totalmente lícita a origem dos fundos com os quais o actual Presidente da República construiu o império agrícola de que agora se gaba?

A segurança alimentar, a saúde pública, ou o sistema económico e financeiro são permanentemente ameaçados por comerciantes estrangeiros, seja porque se constituem em carteis que concertam os preços dos principais bens alimentares, seja porque comercializam alimentos com prazos expirados, seja ainda porque são, essencialmente, os malianos que definem a taxa de câmbio das moedas estrangeiras. Por quê razão o Presidente não acciona o instituto da apropriação pública perante tão evidentes e reiteradas ameaças ao interesse nacional?

Em boa e sã consciência, pode dizer-se que na sua nova roupagem o artigo 37.º, combinado com a Lei da Apropriação Pública, representa um enorme avanço civilizacional?

Algum estrangeiro se sentirá encorajado a investir num país em que a subjectividade ou mesmo o capricho e a inveja podem sobrepor-se à lei?

Tendo dignidade constitucional, a quê instância judicial um cidadão poderia recorrer para reaver bens apropriados, por via da nacionalização, pelos mais diversos artifícios a que o Titular do Poder Executivo pode lançar mão? 

A Vidatel e a Geni inauguraram a “via expressa” de que o Presidente da República se serve para usar todos os poderes que a Constituição lhe confere.

Quem lhes seguirá?

Não nos enganemos: se a origem ilícita dos fundos for o critério principal para as apropriações, em Angola não sobreviverá uma única empresa privada. Mas, não apenas as empresas. Até as próprias casas habitadas pelos principais dignitários do Estado angolano correriam o risco de ser nacionalizadas.