A temporalidade do poder

4665

Terráqueo como qualquer um de nós, como é referido numa outra peça, João Lourenço, vive, porém, um período que o torna circunstancialmente (circunstancialmente, repita-se) diferente dos todos os outros angolanos.

Tal como foi o seu antecessor, João Lourenço é, circunstancialmente, “dono” do país,  já que tem as “impressões digitais” em todos poderes – legislativo, executivo e judicial.

Reeleito em Agosto de 2022, o Artigo 108.º da Constituição da República de Angola faz de João Lourenço Presidente da República, que é o Chefe de Estado, Titular do Poder Executivo e Comandante-em-Chefe das Forças Armadas Angolanas.

Nos termos da CRA, o “Presidente da República exerce o poder executivo, auxiliado por um Vice-Presidente, Ministros de Estado e Ministros”, que, por sua vez são coadjuvados  por Secretários de Estado e ou Vice-Ministros, se os houver”.

O  Artigo 119.º  estabelece que compete ao Presidente da República, enquanto Chefe de Estado: a)Convocar as eleições gerais e as eleições autárquicas, nos termos estabelecidos na Constituição e na lei; b)Dirigir mensagens à Assembleia Nacional; c) Promover junto do Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva e sucessiva da constitucionalidade de actos normativos e tratados internacionais, bem como de omissões inconstitucionais, nos termos previstos na Constituição; d) Nomear e exonerar os Ministros de Estado, os Ministros, os Secretários de Estado e os Vice-Ministros; e) Nomear o Juiz Presidente do Tribunal Constitucional e demais Juízes do referido Tribunal; f) Nomear o Juiz Presidente do Tribunal Supremo, o Juiz Vice-Presidente e os demais Juízes do referido Tribunal, sob proposta do Conselho Superior da Magistratura Judicial; g) Nomear o Juiz Presidente do Tribunal de Contas, o juiz Vice-Presidente e os demais Juízes do referido Tribunal, nos termos da Constituição;  h) Nomear o Juiz Presidente, o Juiz Vice-Presidente e os demais Juízes do Supremo Tribunal Militar; i) Nomear e exonerar o Procurador-Geral da República, os Vice-Procuradores Gerais da República e os Adjuntos do Procurador-geral da República, bem como os Procuradores Militares junto do Supremo Tribunal Militar, sob proposta do Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público; j) Nomear e exonerar o Governador do Banco Nacional após audição na Assembleia Nacional(…); k) Nomear e exonerar os Governadores e os Vice-Governadores Provinciais; l) Convocar referendos, nos termos da Constituição e da lei; m) Declarar o estado de guerra e fazer a paz, ouvida a Assembleia Nacional; n) Indultar e comutar penas; o) Declarar o estado de sítio, ouvida a Assembleia Nacional; p) Declarar o estado de emergência, ouvida a Assembleia Nacional; q) Conferir condecorações e títulos honoríficos, nos termos da lei; r) Promulgar e mandar publicar a Constituição, as leis de revisão constitucional e as leis da Assembleia Nacional; s) Presidir ao Conselho da República; tNomear os membros dos Conselhos Superiores das Magistraturas, nos termos previstos pela Constituição; u)Designar os membros do Conselho da República e do Conselho de Segurança Nacional; v) Exercer as demais competências estabelecidas pela Constituição.

A primeira das competências  que a Constituição atribui ao Presidente da República enquanto Chefe de Estado, João Lourenço nunca convocou as eleições autárquicas. Não o fez no primeiro mandato e não tem deixado escapar quaisquer indícios de pretender convoca-las neste derradeiro mantado.

O Artigo 119.º  da CRA coloca os poderes executivo e judicial na dependência do Presidente da República enquanto Chefe de Estado.

O poder legislativo, que era suposto ser independente, também cai na alçada do Presidente da República por força do Artigo 109.º, o qual estabelece que é  “eleito Presidente da República e Chefe do Executivo o cabeça de lista, pelo círculo nacional, do partido político ou coligação de partidos políticos mais votado no quadro das eleições gerais”.

Em Angola, nenhum partido político concorreu com um cabeça de lista que não fosse o seu líder.

É isso que explica que o Bureau Político do MPLA tenha assumido publicamente que a constituição dosórgãos internos da Assembleia Nacional  foi exclusivamente decidida pelo seu líder. 

Já o  Artigo 122.º atribui ao Presidente da República competências para:  a) Exercer as funções de Comandante em Chefe das Forças Armadas Angolanas; b) Assumir a direcção superior das Forças Armadas Angolanas em caso de guerra; c) Nomear e exonerar o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas Angolanas e o Chefe do Estado-Maior General Adjunto das Forças Armadas, ouvido o Conselho de Segurança Nacional; d) Nomear e exonerar os demais cargos de comando e chefia das Forças Armadas, ouvido o Conselho de Segurança Nacional; e) Promover e graduar, bem como despromover e desgraduar os oficiais generais das Forças Armadas Angolanas, ouvido o Conselho de Segurança Nacional; f) Nomear e exonerar o Comandante Geral da Polícia Nacional e os 2.ºs Comandantes da Polícia Nacional, ouvido o Conselho de Segurança Nacional; g) Nomear e exonerar os demais cargos de comando e chefia da Polícia Nacional, ouvido o Conselho de Segurança Nacional; h) Promover e graduar, bem como despromover e desgraduar os oficiais comissários da Polícia Nacional, ouvido o Conselho de Segurança Nacional; i) Nomear e exonerar os titulares, adjuntos e chefes de direcção dos órgãos de inteligência e de segurança do Estado, ouvido o Conselho de Segurança Nacional; j) Conferir condecorações e títulos honoríficos militares e policiais. 

É essa “montanha” de poderes,  cuja altura supera, seguramente, a do Monte Evereste, que, eventualmente, convence o Presidente da República de uma superioridade natural sobre as outras pessoas.

Por causa de todos esses poderes, presumivelmente João Lourenço se julga num patamar superior, jamais alcançado  por qualquer ser ou ente.

É isso que, possivelmente, explicará que um dia depois de haver aprovado em sede do Conselho de Ministros, por ele aprovado, uma proposta de lei de amnistia que basicamente beneficia apenas  pilha-galinhas, o Presidente da República tenha escrito um post em que exalta o perdão e a reconciliação.

Talvez por excesso de poder, ou pelo convencimento de que está acima e à margem da lei, o Presidente João Lourenço não leu ou nunca ouviu falar da máxima do filósofo francês segundo a qual uma “lei quando deixa de proteger os nossos adversários, virtualmente deixa de nos proteger.”

Em algum momento da vida, João Lourenço há de perceber que nem o poder é intemporal e nem ele dono e senhor de tudo.