A Inversão de prioridades em Saúde em Angola (I)

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De tão grandes as evidências, é praticamente uma verdade a la palisse afirmar-se hoje que o nosso sistema de saúde é absolutamente disfuncional. 

A questão então deve ser deslocada para as causas da persistência destas disfunções e são, talvez, as respostas a esta questão que podem iluminar potenciais soluções capazes de corrigir as distorções acentuadas do sistema que hoje se verificam a olho nu e estão cada vez mais expostas ao olho crítico do cidadão.

O quadro epidemiológico de Angola está bem caracterizado, apesar de algum défice em estudos científicos neste campo particular. As observações empíricas apontam, e os estudos existentes sustentam, que a malária está no topo da morbilidade e mortalidade em Angola, seguida de outras doenças infeciosas como a tuberculose, sobretudo associada ao HIV e das causas maternas, o que faz de Angola uma campeã mundial, “quase vitalícia”, no que toca às taxas de mortalidade materna e em menores de 5 anos.

Nos últimos tempos, porém, à semelhança de outros países em desenvolvimento, Angola tem conhecido uma transição epidemiológica caracterizada pelo aumento da incidência e prevalência das doenças crónicas não transmissíveis que tendem a surgir em idades cada vez mais precoces. Esta transição epidemiológica, que se assiste em África, difere substancialmente daquela que ocorreu em países hoje considerados desenvolvidos e, particularmente na Europa, porque, no nosso caso, ela ocorre sobrepondo-se às doenças infeciosas que ainda constituem o pano de fundo do quadro nosológico, tornando complexas as abordagens de umas e outras, pois complica sobremaneira o exercício de definição de prioridades.

No que diz respeito à mortalidade, sobretudo em jovens, não deve ser descurado na equação o peso das mortes violentas, sobretudo decorrentes da sinistralidade rodoviária, mas também da delinquência juvenil e violência policial, ainda bastante patente entre nós. Por esta razão, a sinistralidade rodoviária e causas conexas como alcoolismo devem ser consideradas também um problema de saúde pública, da mesma forma que as doenças infeciosas, doenças crónicas não transmissíveis e a mal nutrição proteico calórica. Quer as doenças crónicas não transmissíveis como também os traumatismos decorrentes da sinistralidade rodoviária devem ser considerados não apenas pelos índices de mortalidade associados, mas também pelas incapacidades que podem produzir em pessoas em idade activa que podem assim ficar arredadas do mercado de trabalho e transformar-se num fardo adicional às famílias, já de si depauperadas. Também a desnutrição em crianças tem que ser ponderada na base dos efeitos que tem no desenvolvimento das crianças e as repercussões nas suas capacidades intelectuais, sobretudo, na vida adulta, com reflexos importantes no grau de sociabilização e todo o cortejo de consequências inerentes.

Para todas estas situações que compõem o quadro epidemiológico nacional a arma mais barata, eficaz e eficiente é, sem dúvida, a prevenção, a antecipação aos fenómenos. Por exemplo, é um dado adquirido que avanços proeminentes no combate à malária poderiam ser obtidos se se fizessem pronunciados investimentos em saneamento básico que pudesse prevenir a proliferação de mosquitos, que são os vectores da malária. Com a mesma cajadada, seriam conseguidas reduções significativas nos índices das arboviroses como a dengue, chikungunia e febre amarela, que também têm o mosquito como vector. Só a redução dos índices de morbilidade por malária poderia significar uma queda significativa nos internamentos por complicações da doença, redução significativa na mortalidade bruta, materna e infantil, redução abrupta nos custos com tratamento, ausências no trabalho e, muito provavelmente, ganhos importantes de produtividade, capazes de impactar fortemente as dinâmicas económicas do país. Por isso, é uma necessidade imperiosa que o nosso sistema de saúde seja estruturado de modo a atender de forma prioritária a vertente preventiva, sem que isso signifique o desprezo dos outros níveis de atenção em saúde.  

Em 1978 realizou-se em Alma-Ata, no Kazakistão uma Conferência da Organização Mundial de Saúde (OMS) que mudou definitivamente a visão que o mundo tinha até então sobre saúde. Começando por redefinir o conceito de saúde que deveria ser entendida como estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença, a Conferência de Alma-Ata reafirmou enfaticamente que a saúde, “é um direito humano fundamental, e a consecução do mais elevado nível de saúde é a mais importante meta social mundial”, reconhecendo deste modo que a “promoção e protecção da saúde dos povos é essencial para o contínuo desenvolvimento económico e social e contribui para a melhor qualidade da vida e para a paz mundial” (OMS, 1978). 

Isto significa que sobre os governos impende a responsabilidade pela saúde da sua população, implicando a adopção de medidas sanitárias e sociais adequadas para alcançar um nível de saúde que lhes permita levar uma vida social e economicamente produtiva. Fica evidente, a partir desta redefinição, que mais do que tratar doenças, os sistemas de saúde devem estar voltados para a promoção e protecção da saúde, ou seja, uma alteração conceitual que implica alterações estruturais profundas no sistema, de modo a conformar-se com esta nova visão.

A estratégia recomendada pela OMS para a persecução desta meta é a da promoção dos cuidados primários de saúde, revestidos do espírito de justiça social, pois estes, são cuidados essenciais de saúde baseados em métodos e tecnologias práticas, cientificamente bem fundamentadas e socialmente aceitáveis, colocadas ao alcance de todos os indivíduos e famílias da comunidade, mediante a sua plena participação, e a um custo que a comunidade e o país possa manter em cada fase do seu desenvolvimento, com o espírito de autoconfiança e autodeterminação (OMS, 1978).

Fica claro que os cuidados primários de saúde, baseados na aplicação de resultados relevantes de pesquisa social, biomédica e de serviços da saúde, e da experiência em saúde pública, têm em vista os problemas de saúde da comunidade, proporcionando serviços de promoção, prevenção, cura e reabilitação, em conformidade com as necessidades das populações. (OMS, 1978). 

Em 21 de Novembro de 1986, no esteio da Conferência de Alma-Ata realizou-se em Ottawa, Canadá, a primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde reunida para apreciar as necessidades de saúde nos países industrializados. Na declaração que emanou desta histórica reunião (a Carta de Ottawa) frisa-se que a “promoção da saúde centra-se na procura da equidade em saúde”, logo, a promoção da saúde pretende reduzir as desigualdades existentes nos níveis de saúde das populações e assegurar a igualdade de oportunidades e recursos, com vista a capacitá-las para a completa realização do seu potencial de saúde. Para atingir este objectivo, torna-se necessária uma sólida implantação num meio favorável, acesso à informação, estilos de vida e oportunidades que permitam opções saudáveis. As populações não podem realizar totalmente o seu potencial de saúde sem que sejam capazes de controlar os factores que a determinam. Este princípio deve aplicar-se igualmente às mulheres e aos homens (OMS, 1986).

Em suma, falar em promoção da saúde significa mobilizar todas as energias e sinergias no sentido de habilitar as comunidades a encontrar soluções, ajustadas aos diferentes contextos, que satisfaçam as suas necessidades em saúde, isto é, capacitá-las a viver em harmonia com o ambiente no qual se integram. Reza a Carta de Ottawa que “a promoção da saúde está para além da prestação de cuidados de saúde. Inscreve a saúde na agenda dos decisores políticos, em todos os sectores e a todos os níveis, consciencializando-os das consequências para a saúde das suas decisões e levando-os a assumir as responsabilidades neste campo”. Uma política de promoção da saúde combina diversas abordagens complementares, incluindo a legislação, as medidas fiscais, os impostos e as mudanças organizacionais. A acção coordenada que leva à saúde, ao rendimento e às políticas sociais, cria maior equidade. A acção conjunta contribui para garantir bens e serviços mais seguros e saudáveis, instituições públicas mais saudáveis, ambientes limpos e mais aprazíveis (OMS, 1986). 

Como podemos traduzir este movimento de amplitude global para a nossa realidade concreta?

Como atrás referimos, os nossos problemas de saúde, mesmo com as limitações evidentes de estudos melhor sistematizados, são de forma geral sobejamente conhecidos e, apesar disto, a sua persistência é nota dominante. Isto significa a falência sistemática das políticas costuradas para abordagem destes problemas. Do nosso ponto de vista, o principal problema é epistemológico, pois entendemos que o nosso sistema, pelo menos do ponto de vista prático, ainda não incorporou na sua estratégia a filosofia que derivou da Conferência de Alma-Ata, que desloca o foco do tratamento das doenças, para uma visão mais holística que é a promoção da saúde. A compreensão do fenómeno neste nível de abstracção exige que a estratégia dos cuidados primários de saúde seja imanente ao sistema, ou seja, que o nosso sistema de saúde seja estritamente moldado de forma a desenvolver de forma lubrificada e automática os cuidados primários de saúde, tal como preconiza a Organização Mundial de Saúde. 

A prova acabada de que o nosso sistema de saúde está demasiado longe de corresponder à filosofia de Alma-Ata é exactamente esta aberrante inversão da pirâmide de prioridades em saúde que, infelizmente está cada vez mais exposta. Primeiro recusamo-nos a emprestar à função saúde uma fatia maior do OGE, o que diz bem onde esta função se situa na escala de prioridades do Estado angolano. Depois, o pouco dinheiro do erário atribuído à saúde é investido segundo uma hierarquia de prioridades que escapa a léguas da filosofia da promoção da saúde. Em vez de fortalecermos, antes demais, a rede primária de saúde e com isso ampliarmos largamente o acesso à rede de mais utentes, focamo-nos na construção e reabilitação das unidades hospitalares do nível terciário cujo funcionamento e manutenção regulares não temos depois condições de garantir; o resultado é tremendamente conhecido: hospitais especializados entupidos com doentes que podiam perfeitamente ser tratados nos níveis primários de atenção. Ignoramos a necessidade de implantação de um programa robusto de abordagem das doenças crónicas não transmissíveis, mas temos sempre a mão levezinha para autorizar a abertura de centros de hemodiálise, até por entidades particulares que cobram ao Estado honorários elevadíssimos; investimos pouquíssimo no aperfeiçoamento dos internatos de especialidade no país, mas somos rápidos a autorizar a quantia módica de 26 milhões de dólares para contratar especialistas russos. Cada especialista russo custa aos cofres do Estado cerca de 5 mil dólares/mês, mas o mesmo Estado se recusa a pagar aos especialistas angolanos um salário de, pelo menos, mil e quinhentos dólares. 

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Maurílio Luiele
*Médico, Mestre em Biociências, Docente universitário na FMUAN