ANGOLA: INDEPENDÊNCIA E DESENVOLVIMENTO HUMANO

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Um dos dilemas mais prementes da vida da pessoa pobre é a falta de papal higiénico, que anda ligada à própria falta de condições higiénico-sanitárias no entorno familiar, a começar pela falta de água canalizada. Normalmente, a casa de banho de uma família pobre é um tugúrio de chapa sem tecto e sem porta fixa no fundo do quintal. Nesse tugúrio, haverá um bidon ou um tambor de água para as necessidades prementes e uma caneca que serve para escoar os resíduos sólidos pela sanita de cimento abaixo, e também para tomar banho. Se, nesse lar, nem dinheiro há, muitas vezes, para comprar pão, o papel higiénico seria uma mordomia de reis. 

No tempo em que se liam jornais e quando os havia em profusão e diversidade de títulos a um preço módico, servia de papel higiénico, o qual, no entanto gravava no obscuro recanto biológico da humanidade algumas impressões lexicais.

No campo, o pobre safa-se recorrendo às folhas de certas árvores, como o abacateiro, que as tem largas, ou pedaços de folhas de bananeira, também o simples capim serve para o efeito de sanear os restos fecais e crianças muitas vezes arrastam o soalho pélvico na areia do mato.

Se este fosse o único dilema das classes mais depauperadas de Angola, não haveria tanta solidão icónica patente no rosto de muito zungueiro e menino engraxador de rua, para não situar aqui a marca de alienação que perpassa o rosto das mulheres (zungueiras e outras), porque na mulher há outra condição que requer outros produtos de higiene para além do papel e para os quais não haverá dinheiro que baste.

Se comecei com este dilema o tema que me propus abordar neste 11 de Novembro de 2023, dia da “independência” (fenomenologicamente entre parêntesis e com letra minúscula), é precisamente para alertar que não basta, por exemplo, inaugurar “pontecos” como os da Samba que custam 30 milhões de dólares ou um aeroporto que, ao tempo do outro senhor, já rondava os 9 mil milhões de dólares e não terminava, é urgente resolver pequenos problemas existenciais da pessoa humana angolana. E não é só o problema da higiene pessoal. Este passa por uma política global de saneamento básico do meio. Este, por sua vez, não se pode concretizar sem uma torneira que jorre água potável no quintal das famílias que nunca hão viajar pelo novo aeroporto do Quilómetro 30, talvez apenas limpar o chão e as casas de banho do mesmo.

UMA HISTÓRIA DE SUCESSO

Uma análise do impacto da independência sobre os diversos sectores da sociedade angolana, mostrará que esse impacto não foi apenas negativo e é nesta assumpção da verdade que se situa o busílis da problemática do desenvolvimento humano em Angola.

O modelo de governação em Angola criou, desde 1975, um grupo de cidadãos, que indicia uma história de sucesso em África. É preciso estudar o fenómeno do sucesso das elites no poder em Angola (como por toda a África). Este grupo tem ao seu dispor todo um aparato de tecnocratas bem formados e organizados para o enriquecimento, para o empresariado elitista, dominam a posse de imensas terras, minas de diamantes, têm participação nos dividendos do petróleo e usufruem dos melhores cuidados médicos. 

Este deve ser considerado o maior impacto da independência de Angola, pois ultrapassou o paradigma do enriquecimento colonial, superámos o círculo colonial de detentores de riqueza em Angola. 

Podemos calcular, a priori, um número de 300 mil cidadãos angolanos que se encaixam nesta história de sucesso, considerada a classe alta. O capital acumulado por este grupo, maioritariamente constituído por pessoas que já foram ou são dirigentes, ronda entre 50 biliões, no máximo, a 200 milhões de dólares.

Dentro deste círculo central, insere-se um núcleo central de abençoados pela independência,composto por algumas centenas de macro-capitalistas resultantes da acumulação primitiva do capital. Formam um mundo à parte, utilizando uma linguagem conotativa ou persuasiva, muitas vezes anunciando cenários da mais pura ficção.

Mas também é de considerar um ganho da independência um número de 1 milhão e 500 mil cidadãos da classe média alta que têm acesso à riqueza, mais por mérito do Estado patrimonial e do seu clientelismo que lhes faculta a posse de determinados bens económicos. Neste grupo incluem-se cidadãos com capitais que vão desde os 100 milhões ao milhão de dólares.

A seguir, temos o terceiro círculo de angolanos da classe média, empregados na Administração Pública e em empresas privadas, no ramo da burocracia e da tecnocracia. Deste vasto grupo, formatado pelo critério da segurança financeira e patrimonial, contam-se funcionários com um nível de ensino superior, os chamados quadros superiores, os intelectuais proletários, os professores universitários. 

Neste círculo, há uma onda mais interior, composta pelos dirigentes intermédios. São os directores nacionais, PCAs e CEOs, tanto no Estado, como nos bancos, empresas petrolíferas nacionais ou estrangeiras, ou instituições de ensino e os quadros intermédios e superiores reformados dos exércitos da guerra civil, bem como ex-deputados da primeira legislatura, com direito a uma pensão mais equilibrada para o seu estatuto. Uns, empregues em grandes empresas como a Sonangol e a Endiama, usufruem de salários surrealistas, regalias sociais invejáveis e têm a reforma assegurada. Rondarão os 400 mil funcionários.

“Não basta, por exemplo, inaugurar “pontecos” como os da Samba que custam 30 milhões de dólares ou um aeroporto que, ao tempo do outro senhor, já rondava os 9 mil milhões de dólares e não terminava, é urgente resolver pequenos problemas existenciais da pessoa humana angolana”

Um sub-grupo deste círculo vestido de certa estabilidade financeira é formado por quadros políticos trabalhando nas sedes dos partidos com assento no Parlamento. Em termos de vida, têm um salário razoável para viver e fazer viver outras pessoas sob sua tutela, garantir o ensino dos filhos e parentes e viajar para o exterior de férias ou em tratamento. Não podemos deixar de incluir neste círculo os proprietários de terras sem vínculo creditício com a banca ou o Estado patrimonial, bem como os detentores de superfícies comerciais (até superfícies comerciais religiosas) de nível médio ede lojas de conveniência.

Um quarto grupo social, que poderemos chamar de classe trabalhadora, é composto por cidadãos comum nível médio e alguns (guardas, recepcionistas, empregados de limpeza) detêm um nível primário de educação. Têm uma certa estabilidade social, perigada pela inflação e consequente subida dos preços da cesta básica, mas têm, pelo menos, o direito à reforma. Membros do último escalão das forças de Defesa e Segurança são aqui inseridos, dentre os quais se destacam os fiscais e que acrescentam ao salário o imposto directo de extorsão diária chamado gasosa. 

Neste círculo estão os angolanos empregados no comércio e na indústria privadas. Uma parte deste grupo tem um nível de literacia e escolaridade mínimos. São os trabalhadores maioritariamente inseridos em diversas áreas da construção civil, os motoristas (incluindo os taxistas dos Hiaces), kupapatas, cujo salário é mínimo. Outra franja mais pequena é constituída pelos técnicos com alguma formação profissional, tendo no topo os empreiteiros, torneiros, mestres de obras, operadores de máquinas e por aí adiante. Este grupo de profissionais encontra trabalho em empresas estáveis ou perde o emprego quando sobrevém uma crise económica, como acontece desde 2014, recuando para o grupo anterior na categoria do exército de reserva, mas, dada a sua mais valia técnica, têm a oportunidade de encontrar trabalho sazonal. Aqui entra um grupo de algumas centenas de milhares de antigos combatentes que recebe uma pensão mensal de 20 mil kwanzas, que lhes possibilita mandar as mulheres de casa para a zunga. 

Do círculo central da classe alta ao quarto círculo da classe trabalhadora, teremos cerca de 4 a 5 milhões de habitantes.

A independência de Angola resultou num impacto positivo sobre estes quatro grupos socias, aqui formatados metodologicamente em círculos sociais concêntricos.

NOVO ÍNDICE DEMOGRÁFICO

Nem mesmo com as consequências decorrentes da Guerra Civil, que teve início em 1961 e terminou em 2002, e que levou para o limbo da eternidade milhares de vidas jovens, a procriação da Mulher Angolana foi afectada. No dealbar da independência, éramos apenas 10 milhões. Hoje, somos mais de trinta milhões de almas. A cada dez anos, os angolanos crescem cinco milhões, dado o elevado índice de natalidade da mulher angolana, com uma média de 6 filhos. A partir de 2023, esse crescimento demográfico será da ordem dos 7 ou 8 milhões a cada dez anos. 

Um ponto de ordem para dizer que hoje em dia o índice demográfico das nações tem um referencial paralelo ao da territorialidade. Hoje, a produção de alimentos revela-se ainda mais crucial que o território. Por isso, Angola é um país densamente povoado, porque vive quase da importação de alimentos básicos como a cebola e o alho e devia ou controlar a natalidade ou promover uma ampla criação de emprego. Das duas, uma.

O fim do conflito em 2002 revelou também outro impacto da independência: Angola criou o maior exército da África Ocidental, capaz de resolver dissídios político-militares na região. Esse poder bélico resultou de contínuos e inamovíveis avultados investimentos nos sectores de Defesa e Segurançae que descuram, tanto a problemática demográfica, quanto o foco no desenvolvimento humano que tem a sua centralidade na Escola.

LITERACIA DOS GOVERNANTES

Há em Angola um grave problema de iliteracia dos dirigentes máximos. Não lêem. Não lêem nem a própria Constituição de 2010, criada pelo partido do qual fazem parte, nem lêem a obra poética do cidadão cujo nome foi por eles mesmos atribuído ao novo aeroporto inaugurado ontem no Quilómetro 30. A Constituição angolana possui alguns princípiospara a concretização do sonho da Angolanidade: a Reconciliação Nacional. A poesia de Agostinho Neto insere a maior aspiração da luta de libertação: a elevação da condição humana. 

Desde logo, o princípio fundamental da Constituição angolana, inscrito no seu “Artigo 1.º (República de Angola): Angola é uma República soberana e independente, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade do povo angolano, que tem como objectivo fundamental a construção de uma sociedade livre, justa, democrática, solidária, de paz, igualdade e progresso social”

O Artigo 21.º (Tarefas fundamentais do Estado) refere que constitui tarefa fundamental do Estado angolano, dentre outras: 

h) Promover a igualdade de direitos e de oportunidades entre os angolanos, sem preconceitos de origem, raça, filiação partidária, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Estes fundamentos constitucionais poderiam servir como argamassa da paz social para a construção da Angolanidade, enquanto veio condutor da edificação de uma verdadeira Nação sobre as bases da fundação colonial de Angola.

A poesia da obra de Agostinho Neto, ‘Sagrada Esperança’, configura uma poética do desenvolvimento africano, cujo princípio fundante ele define no mais longo poema intitulado ‘A Voz Igual’. Para o poeta, o desenvolvimento integral está incondicionalmente centrado na elevação da condição humana, como podemos ler nestes versos:

“os homens saídos dos cemitérios da ignorância

das ossadas insepultas dos arrabaldes das cidades

nas sanzalas e nas terras estéreis 

são os eleitos

os participantes efectivos no festim da nova vida

e das suas vicissitudes

(…)

livres do constrangimento livres da opressão livres.” 

Este é o principal paradigma de desenvolvimentohumano que ficou adiado no tempo e no espaço. Por isso, hoje existem cerca de 20 milhões de angolanos cujo impacto da independência é estrondosamente negativo, devido a altos índices de subdesenvolvimento humano.

Não basta construir um aeroporto milionário e atribuir-lhe o nome de Agostinho Neto! 

Se a obra Sagrada Esperança estiver realmente nas estantes da tal Biblioteca, eu acredito que, quando os membros do Executivo frequentarem real e efectivamente a tal Biblioteca da Presidência “cujo edifício monumental custou mais de 250 milhões de dólares e gasta o equivalente a mais de dois milhões de dólares por mês em manutenção”, segundo o site Maka Angola, então teremos uma reviravolta de pensamento estratégico na governação de Angola.Porque só quando o Governo de João Manuel Gonçalves Lourenço ler atentamente o poema A Voz Igual, de Agostinho Neto e, com base na sua aspiração, eleger nas políticas públicas e no OGE “os homens saídos dos cemitérios da ignorância/ das ossadas insepultas dos arrabaldes das cidades/ nas sanzalas e nas terras estéreis” estará automaticamente a materializar o artigo 25º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar a si e à sua família a saúde e o bem-estar…” Este princípio do desenvolvimento humano se situa para além das ideologias e partidos políticose possibilitará a verdadeira Unidade Nacional.

A concretização dessa aspiração mais alta da luta de libertação, que custou as vidas de heróis como Hoji ya Henda e milhares de outros anónimos e conhecidos, no exílio e dentro de Angola, permitirá criar um modelo que alargue o sistema de sucesso humano bem organizado para a maior franja da população.