A BANALIZAÇÃO DO MAL
E A CRISE DO PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO

1975

As atrocidades das duas guerras mundiais (1914-1918 / 1939-1945), que tiveram o epicentro na velha Europa, interpelaram a consciência da HUMANIDADE 

Depois de tanta destruição e de tanto morticínio, os principais actores da geopolítica mundial da época sentiram, de repente, uma guinada regeneradora da última réstia de humanidade que ainda podiam ostentar. 

Diante dos seus olhos, estava o espetro da ferocidade e da crueldade nunca visto antes na História Universal, onde se contavam dezenas de milhões de mortos e estropiados, cidades inteiras arrasadas, milhares de batalhas terrestres, aéreas e marítimas. 

A barbárie generalizada e o holocausto dos judeus terão inspirado a filósofa judia Hannah Arendt a propor uma análise da banalização do mal na sociedade através do seu livro “Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal”(1963). 

Na sua reflexão, a maldade não se dá por causa da natureza de carácter ou de personalidade, mas, sim, pela incapacidade de julgar e conhecer as situações, os factos, as estruturas e o contexto. Noutros termos, trata-se de incapacidade de pensar e não propriamente algum desejo ou premeditação para o mal. Essa intuição filosófica terá sido inspirada pelo julgamento do temível oficial nazi, Adolf Eichmann, em 1961. 

Nos nossos dias, essa intuição é geralmente interpretada na Filosofia e na História das Ideias Políticas como a falta de reflexão crítica sobre determinados assuntos, gerando a falta de compromisso. Aqui estaria a chave da banalidade do mal e da mediocridade humana. O mal não é uma categoria ontológica ou metafísica. Não se trata de um “ens a se”, mas de um “ens ab alio” (não é uma coisa que existe em si mesmo, mas através de outro ente). Tal como a sombra não existe em si mesma, assim o mal não tem subsistência autónoma. Por isso se diz que o mal é ausência do bem. Neste sentido, o foco tem de ser colocado na pessoa humana. É nele que devemos buscar as raízes do mal, mesmo quando estamos diante da lancinante pergunta existencial sobre o sofrimento do inocente, tão bem retratado por Fiodor Dostoiévski no seu romance “Os irmãos Karamazov”.

A crise do pensamento contemporâneo é uma realidade insofismável.

Há crise de pensamento não porque já não se pensa ou se pensa pouco. Mas o grande “quid” está na qualidade desse pensamento. O pluralismo hodierno – onde se cruzam e se apupam correntes de pensamento e ideologias deletérias de todo o jaez – alimenta o relativismo moral e sufoca a espiritualidade humana. Se na história da filosofia estão registadas as principais correntes de pensamento que marcaram várias épocas da humanidade, hoje, com o polvilhar de miríades de correntes de pensamento e doutrinas, temos dificuldades em identificar um pensamento suficientemente robusto para marcar a nossa época e para servir de bússola aos novos rumos da humanidade. Tem de ser um pensamento humanista na sua essência. É preciso recuperar os paradigmas de uma racionalidade radicada na HUMANIDADE como um todo. 

Os antigos areópagos das ideias humanistas foram substituídos pela revolução tecnológica e pela produção industrial. Está na moda aquilo que estão a chamar por “inteligência artificial”, uma invenção tão perigosa quanto insidiosa como a revolução genética que preconiza a clonagem humana. O Homem do século XXI vai sendo robotizado pela tecnologia e reduzido à máquina de consumo da sociedade hedonista ora em voga. As relações humanas são determinadas pela pauta do utilitarismo. Por isso, a crise do pensamento é a crise do Homem, marcada por um “esvaziamento existencial” sem precedentes. Sem um pensamento orientador como podemos avaliar as situações, os factos e os contextos?

No rescaldo da duas grandes guerras foi ensaiado um pensamento humanista que consistia em pensar a HUMANIDADE como um todo (enquanto espécie) e agir em consequência. A Sociedade das Nações (1919) e a Carta das Nações Unidas (1945) são o protótipo dessa regeneração moral depois das atrocidades da guerra. A irracionalidade da guerra sucumbia perante a premência de se projectar o sonho de uma nova humanidade renascida das cinzas da guerra. Esta nova humanidade iria partilhar os mesmos valores e princípios universais baseados no texto da Declaração de independência da América: “todos os homens nascem livres e iguais”. Daqui brotam os princípios e valores que deram lugar à “Declaração Universal dos Direitos do Homem” (1948). Muito antes disso, Immanuel Kant havia projectado o sonho de uma grande federação da paz perpétua com pressupostos humanistas que afastariam para sempre o espetro da guerra com o desaparecimento dos exércitos pemanentes (A Perpétua – Um projecto filosófico: 1795/96).

O conflitos violentos que assistimos actualmente não são uma obra do acaso. Na verdade, evocam a crise do pensamento. Temos de repensar a ordem social actual a partir daquilo que a filósofa Simone Weil designa por “enraizamento”. Trata-se de uma «exigência do bem absoluto que habita no coração do homem, mas que tem a sua origem numa realidade situada fora do mundo». «O enraizamento talvez seja a necessidade mais importante e mais ignorada da alma humana (…) Todo o ser humano precisa de ter múltiplas raízes, precisa de receber a quase totalidade da sua vida moral, intelectual, espiritual, por intermédio dos ambientes a que naturalmente pertence.» 

Com a sua ideia de “enraizamento”, Simone Weil procurou engendrar as bases de uma doutrina, regressando aos princípios que permitiram o estabelecimento das civilizações de forma durável. Na sua lógica, a crise do pensamento hodierno desvela igualmente a crise dos deveres. Promulgaram-se os direitos universais enquanto procastinavam os deveres universais.

A nova religião dos direitos humanos, com o principal templo em Genebra (palácio wilsoniano), multiplicou devotos entusiastas e arautos em todas as geografias. 

Daí o desenraizamento do Homem contemporâneo que, desde a revolução gaulesa, alcandorou a noção do direito e ergueu o pedestal da deusa razão. Todos reclamam direitos, ninguém evoca os deveres. Do ponto de vista ontológico, os direitos não têm subsistência própria sem obrigações. Eu tenho um direito apenas na medida em que alguém tem o dever ou a obrigação de realizá-lo. Segundo Weil, «a noção de obrigação prima sobre a do direito, que lhe está subordinada e que lhe é relativa. Um direito não é eficaz em si mesmo, mas em relação à obrigação a que corresponde; o cumprimento efectivo de um direito não depende de quem o possui, mas dos outros homens que se sentem obrigados a cumprir algo para com ele.» Parafraseando Immanuel Kant, sem um “imperativo categórico”, enraizado na alma humana, em que «todo o ser humano deve agir de acordo com os princípios morais», os direitos universais não passarão de uma litania para agradar os ouvidos. 

O que se passa hoje no Médio Oriente é um exemplo acabado deste postulado, já que, por um lado, as vozes moralistas conclamam aos quatro ventos o direito humanitário em favor dos míseros palestinos, enquanto, por outro lado, os judeus, a raça eleita por Javé, também reclamam o seu direito à segurança e auto-defesa, pondo de parte a questão das obrigações. Ora, «os direitos estão sempre sujeitos a determinadas condições. Só a obrigação pode ser incondicionada», defende ainda Simone Weil. A noção do direito está arreigada na ordem imanente das coisas, enquanto a categoria dos deveres transcende a realidade imanente. Se o Homem não se reecontrar com as suas raízes mais profundas, com a sua alma, a ordem social será sempre imperfeita e cruel. O ser humano tem de redescobrir que tem um destino eterno, recusando atolar a sua transcendência no poço insano da mundanidade. 

É precisar abraçar a “ética do coração” preconizada por Sócrates, onde cada ser humano tem de questionar se está a cuidar bem da sua própria alma.

Afinal, é aí onde o Homem descobre os seus deveres e é aí também onde domiciliam os grandes dramas da HUMANIDADE de que resultam as discórdias actuais.