QUANDO A VINGANÇA NÃO CASA COM A JUSTIÇA (II)

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“A justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta”

Ruy Barbosa de Oliveira (5 de Novembro de 1849 a 1 de Março de 1923, polimata brasileiro que se destacou como  jurista, advogado, político, diplomata, escritor, filólogo, jornalista, tradutor e orador).

O julgamento de José Filomeno dos Santos, Valter Filipe e Jorge Gaudens Sebastião, no quadro do que se designou caso dos 500 milhões, já entrou nos anais da história como aquele em que juízes e procuradores mandaram bugiar a verdade material e concentraram-se em forjar provas e ciladas que culminassem com a condenação dos réus.

Ao longo de todo o processo, ficou por demais evidente que juízes e magistrados seguiam um guião que excluía, de todo, a absolvição de qualquer dos réus.  

A máscara caiu logo que juízes e procuradores começaram por desvalorizar o testemunho escrito de José Eduardo dos Santos, peça fundamental do processo, e a seguir insinuaram que a assinatura do declarante poderia ter sido adulterada por um dos réus, José Filomeno dos Santos.

Confrontados com evidências irrefutáveis, juízes e procuradores barricaram-se, depois, em dois argumentos contraditórios: o primeiro dizia que a operação para a captação de um financiamento de 30 mil milhões de dólares teria sido montada à revelia de José Eduardo dos Santos. Desmentidos pelos factos, penduraram-se à mirabolante tese de que seria ilegal a autorização de José Eduardo dos Santos para a prossecução da operação. Ou seja, insinuaram que embora fosse simultaneamente Presidente da República e Titular do Poder Executivo, a José Eduardo dos Santos faltaria suporte constitucional para autorizar uma operação daquela monta. 

Apesar das abundantes provas de que a operação não apenas fora autorizada por quem tinha poder para fazê-lo como a sua interrupção resultou na devolução integral dos 500 milhões empregues para a capitalização do fundo, juízes e procuradores, em cega e absurda obediência ao guião que lhes orientava todos os passos, optaram por condenar os quatro réus.

Quando em Agosto de 2020 se decidiu pela condenação dos réus Valter Filipe, José Filomeno dos Santos, Jorge Gaudens Pontes e António Samalia Bule por pretensamente defraudarem o Estado angolano em 1.500 milhão de dólares, ao Tribunal Supremo já tinha sido provado que os 500 milhões de dólares reclamados não se encontravam nem nos bolsos de qualquer dos réus e nem fora da esfera patrimonial do Banco Nacional de Angola. O dinheiro estava  numa conta custódia criada para a capitalização do fundo. Além disso, a Mais Financial, empresa que intermediou a criação e propósito do fundo, já tinha devolvido ao BNA a totalidade dos 26, 5 milhões de dólares que recebeu como compensação pela sua intermediação. Foram ainda os réus que suportaram integralmente os custos – 2 milhões de libras –  do processo, entretanto aberto em Londres pelo Estado angolano para reclamar a devolução do dinheiro que julgava tomado ilicitamente pelos réus. Ou seja, à data da condenação, o Tribunal Supremo estava da posse de todos os elementos demonstrativos de que o Estado angolano não fora lesado em um tostão.

A Câmara Criminal do Tribunal Supremo, presidida pelo juiz conselheiro João da Cruz Pitra, condenara, então, Valter Filipe, ex-governador do Banco Nacional de Angola, à pena de prisão maior de oito anos; Jorge Gaudens Pontes Sebastião à pena de prisão de seis anos e José Filomeno de Sousa dos Santos “Zenu” e António Samalia Bule, antigo director do Departamento de Gestão de Reservas do BNA, a cinco anos de prisão efectiva.

Não obstante a panóplia de pretensos ilícitos que lhes foram imputados, cada um dos réus foi condenado por apenas dois crimes.  Valter Filipe e Somalia Bule foram condenados por peculato e burla por defraudação, ao passo que Jorge Gaudens e José Filomeno dos Santos foram condenados por burla por defraudação e tráfico de influência.  

No acórdão, os juízes João da Cruz Pitra, José Martinho e João Pedro Fuantoni insistiram em que o Presidente da República José Eduardo dos Santos teria sido enganado e que a carta através da qual o já então ex-Chefe de Estado assumia total responsabilidade pela operação não teria sido escrita por ele.

Baseando-se não se sabe em quê, um dos juízes sustentou mesmo que a carta de José Eduardo dos Santos teria sido escrita pela defesa de Valter Filipe. 

Estranhamente, embora duvidasse da autenticidade da carta, o trio de juízes nunca exigiu uma perícia à caligrafia de José Eduardo dos Santos e nem processou a defesa de Valter Filipe pelo pretenso crime de falsificação de assinatura.

Accionado pelos réus, em sede de recurso, o Plenário do Tribunal Supremo viu-se num dilema: quatro dos seus membros votaram pela absolvição dos réus e outros quatro fizeram-no pela condenação.

Em qualquer latitude menos “poluída”, o empate levaria a uma de duas saídas: a)reavaliação do processo ou, b) absolvição dos condenados em homenagem ao princípio “in dúbio pro reo”.

Com o guião do processo cuidadosamente guardado, Joel Leonardo, presidente do Tribunal Supremo, tirou da cartola um expediente inconstitucional: votou duas vezes para desfazer o empate, com o que se mantiveram inalteradas as sentenças ditadas em primeira instância.

Por causa do “jogo baixo” de Joel Leonardo, a defesa dos condenados bateu às portas do Tribunal Constitucional para interpor um recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

O recurso jaz no Tribunal Constitucional desde Agosto de 2022.