Lições de empreendedorismo sobre carris … ou como deserdados fazem pela vida (fim)

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Mais de 400 quilómetros, entre Lwena e Kuito, cobertos por uma locomotiva lentíssima. Mas não é perda de tempo. Aulas grátis de empreendedorismo são ministradas em todas as carruagens e estações, onde gente deserdada vende de tudo um pouco para levar uma vida digna. São lições que Faculdade nenhuma ensina…

Kamacupa, a bolsa do feijão

A próxima paragem é Kamacupa, o destino de Maria. Nessa manhã, vendeu quase tudo e mais alguma coisa. Principalmente bebida. Foi dia de dikomba, como diriam as zungueiras de Luanda. O pouco que resta servirá para o jantar na antiga Vila General Machado, onde vai pernoitar para regressar ao Lwena no dia seguinte. Kamacupa, no Bié, a quase 350 quilómetros a Oeste de Lwena, é um grande entreposto comercial. Provavelmente o mais importante da região. Para lá convergem comerciantes do Litoral, Centro e Leste do país e até da vizinha RD Congo. Maria é uma dessas negociantes. Legumes, hortaliça, frutas, leguminosas e outros grãos (milho, soja e arroz…) são produzidos às toneladas. Muitos produtos deterioram-se à beira de picadas esperando escoamento. Mas o feijão não. Feijão é ouro. É quase disputado ao murro, em virtude dos preços competitivos da concorrência que vem do antigo Zaíre. 

Maria já tem assegurado o seu quinhão. “Tenho um canal antigo e não me deixa cair”, explica como se desfaz da concorrência de comerciantes congoleses, cuja fama é a de pagar campos inteiros ainda à sementeira. Nessa tarde ela descerá em Kamacupa, o marco geodésico central de Angola. Aqui, com o seu auxiliar de bebidas, vai comprar um carregamento de feijão, a fim de o revender no Lwena. A mercadoria será colocada num vagão do comboio que no dia seguinte escalará Kamacupa, a caminho da “Capital da Paz”. Legumes e hortaliça também cabem no compartimento que ela pagou sozinha, sem meeira como muitas comerciantes fazem. Quase tudo para revenda na capital do Moxico e uma pequena porção para a casa, onde assume papel de pai e mãe, depois da morte do marido há cinco anos. “Levo vários produtos para vender em Lwena. Mas o que dá lucro garantido é o feijão”, conta a nossa interlocutora, de 37 de idade e que se meteu na estrada “para dar de comer os quatro filhos”, depois que ficou viúva.

O maquinista, durante o seu segundo “carregamento”, antes de deixar Kamacupa…

Ela transaciona produtos do campo na cidade de Lwena. Mulher de armas, para não ir ociosa no comboio em busca da mercadoria, entendeu fazer alguma coisa. “Faço esta viagem uma vez por semana. Nos primeiros dias ia de mãos a abanar. Houve uma vez que não gostei da comida e decidi que em vez de ir só sentadinha até Kamacupa podia ir e vir a fazer negócio. Assim, quando vou vendo comida e quando regresso também, enquanto tenho a mercadoria no vagão”, conta a empreendedora que diz pagar as contas todas da família, inclusive as propinas dos filhos num colégio do Lwena.

Kamacupa está a pouco mais de 80 quilómetros do Kuhemba. O comboio sobe cada vez mais alto. Partiu de uma altitude 1.327 metros acima do nível do mar, no Lwena, e está agora a 1.330 metros, depois de ter passado por 1.495 metros, em Mosimoje, que já foi estação, mas com a guerra as populações locais fugiram para localidades mais próximas como Cangonga e Munyango. Devagar, devagar, devagarinho… a composição passa por pontes e pontecos, vales e pequenos cursos de água, deixando para trás Kuhiva e Kueli. Num repente surge, majestoso, a nascente do rio Kwanza, à direita do comboio. É um braço de água aparentemente inofensivo. Nem parece que lá mais à frente é tão sublime e imponente, até abraçar o Atlântico em ternura permanente.  

Ajudada pelo seu auxiliar de bebidas, Maria, entretanto, já arrumou as bikuatas e prepara-se para descer daí a instantes. Depois de contemplar o Kwanza, já só faltam 23 quilómetros. Kamacupa, o grande centro de produção de grãos (milho, soja, arroz e muito mais) está prestes a materializar-se nas laterais da estação. Por volta das 13h00 o comboio faz-se à plataforma. Mal a máquina pára, as portas são assaltadas por vendedeiras de alimentos. Gritam a plenos pulmões o que têm para vender. Abacate, mamão, laranja, banana, jinguba, feijão, batata doce, batata do reino, ervas diversas, mel, hidromel… muita comida. Também há carne de caça aos montes. Como na paragem anterior, a música volta a parar. Na carruagem só se ouve os pregões sobrepostos e indecifráveis das vendedeiras, muitas das quais adolescentes. Como na paragem anterior, há comerciantes, principalmente rapazes, que adentram a cabine a fim de convencer, olhos nos olhos, a clientela. 

A estação de Catabola, pouco antes do hub em que se transformou o Kuito

O tempo de paragem é longo. Apesar de não haver sistema de som, a mensagem passa de passageiros frequentes para quem não sabe como funcionam as coisas. Há uma hora de interrupção na caminhada e muita gente desce do comboio. Uns fumam, outros preferem o corpo-a-corpo com vendedeiras para regatear preços. Há quem apenas jogue conversa fora, com interlocutores circunstanciais. O maquinista também sai da cabine e vai às compras. Quase meia hora depois, na plataforma do lado oposto, imobiliza-se outro comboio, que segue para o Lwena ou talvez para o Luau, ponto em que a linha férrea iniciada no Lobito cumpre 1.345 quilómetros, rasgando o país de lés-a-lés.  Aquela composição também é assaltada por vendedores. A gritaria chega audível até nós, misturando-se com o berreiro do “nosso” comboio. Kamacupa é uma espécie de bolsa de valores. É aqui onde são determinados os preços de vários produtos, mas sobretudo do feijão.

Kuito, “hub” para as principais cidades

Maria e o seu ajudante, entretanto, já desceram para tratar de negócios mais lucrativos. O tempo passa e aos poucos o barulho dos vendedores vai baixando de volume. Falta pouco para o comboio cobrir os últimos 150 quilómetros até ao Kuito. Os passageiros vão entrando, com toda a sorte de mercadorias. Um leva ao ombro, protegido com um pedaço de papelão e plástico, uma perna de veado ainda a pingar sangue. “Não posso pôr no saco porque até chegar ao destino pode estragar”, explica-se para ninguém, enquanto se lhe dirigem olhares indagadores de outros viajantes. Daí a instantes, o maquinista, garbosamente metido num fato preto, vem carregado de imbambas. Numa primeira viagem traz nas mãos galinhas, muitas galinhas, e alguns sacos. Debaixo dos braços traz esteiras de matebae vassouras do tipo kisese, dirigindo-se à cabine. Numa segunda viagem traz mais bens. Após cumprir pouco mais de uma hora de paragem, o comboio apita finalmente e parte para a “Cidade Mártir”, onde atingirá o ponto mais alto do seu percurso, aos 1.720 metros acima do nível do mar. Mais do que isso, só mais tarde, já sob o manto da noite, quando chegar à Chicala-Cholohanga, província do Huambo, a 1.848 metros de altitude. 

O vendedor de óculos também desce no Kuito, depois de quase um dia inteiro a ganhar o pão…

Descansada, a máquina vai comendo os poucos quilómetros que restam. Pela janela da carruagem passa demoradamente Catabola, sem parar. Passa também Chipeta. Faltam 25 quilómetros para o Kuito. Por volta das 16h00 a composição estaciona na estação da cidade. No Kuito, são desovados do furgão (carruagem específica para transporte de meios rolantes) grande porção dos automóveis que ali seguem. Como a maior parte dos passageiros que vai ao Huambo, Benguela e Kwanza Sul, descemos na capital do Bié. À saída do comboio no Kuito e após rastreio para tomada da temperatura corporal, há um pelotão de correctores de serviços de transportação. Tentam convencer os passageiros, na lábia. Os destinos são vários. Incluindo Luanda, mesmo com cerca sanitária. A partir daqui é mais rápido chegar àquelas paragens de automóvel. Também há carros para Malanje. Partimos para o Huambo e, apesar de um percalço no caminho, que nos obrigou a parar quase 45 minutos, chegámos por volta das 19h00. O comboio, este, só chegaria perto das 23h00. No dia seguinte, de manhã, partirá para uma jornada de 426 quilómetros com destino ao Lobito, ponta da linha. Com isso, concluirá uma homérica viagem por entre escabrosas encostas, fundas gargantas, densos matagais, amplas estepes e belas chapadas. 

Não sendo propriamente salas de uma qualquer faculdade de Economia ou de Gestão, as carruagens daquele comboio são locais de aprendizado incessante. Todos os dias são ministradas aulas práticas e grátis de empreendedorismo e administração de negócios. A Maria (nome fictício) é uma verdadeira professora, um exemplo de como é possível dar a volta ao texto, com força de vontade e (principalmente)… vontade de fazer força!…