Vieira, médico morre 
em circunstâncias nebulosas

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Um “provável enfarte agudo do miocárdio (EAM)“ teria sido a causa da morte do pediatria, Francisco Vieira, ocorrida na noite de domingo, em Luanda.

A putativa ração da morte foi anunciada terça-feira pelo legista do Ministério do Interior que autopsiou o corpo de Francisco Vieira.

Médico interno do último ano da Especialidade de Pediatria, pela Clínica Sagrada Esperança, Francisco Vieira, 37 anos, foi recolhido, já sem vida, pela Polícia por volta das 19 horas e levado ao Hospital Josina Machel, onde o corpo clínico de serviço confirmou, de imediato, a falência de todos os órgãos vitais e consequentemente a morte. 

Na noite de domingo, quando contactou a família para lhe comunicar a morte do jovem pediatra, a Polícia disse que o corpo foi encontrado na via pública junto com a sua motorizada e os documentos, que incluíam cartões multicaixa. Quer os documentos quanto a motorizada e os cartões bancários estavam intactos. 

Ao corpo clínico do Hospital Josina Machel, além do corpo, a Polícia entregou também uma lâmina de Sildenafila (Viagra) com menos um comprimido.

Nem ao hospital e nem aos familiares, a Polícia não disse como chegou ao cadáver.

Nas redes sociais, não há um único vídeo do cadáver estendido de Francisco Vieira, o que, nos dias que passam não é comum.

A Polícia disse ter recolhido o cadáver na via pública, no Bairro Rocha Pinto, onde, aliás, vivia o malogrado. A residência onde Francisco Vieira vivia fica a escassos metros do Banco Comercial de Angola, à Avenida 21 de Janeiro. 

Pelo estado do cadáver, especialistas estimaram que a morte teria ocorrido entre duas a três horas antes de ser recolhido pela Polícia.

É estranho que o cadáver de um humano, exposto na via pública durante duas a três horas, não tivesse chamado à atenção a nenhum morador do bairro ou a qualquer transeunte.  

À primeira observação, os médicos de serviço no Hospital Josina Machel não identificaram quaisquer sinais de hematomas, hemorragia, fractura ou de escoriações, o que descartou, desde logo, o politraumatismo como causa provável da morte. 

No relatório, o legista sustenta o “provável enfarte agudo do miocárdio” com sinais de cianose marcada (coloração azulada dos lábios, unhas e da pele) encontrados no corpo. 

Ao Correio Angolense, um especialista esclareceu que a cianose marcada deriva de déficit grave de oxigenação dos tecidos em situação de infeção grave (sepsis), falência cardíaca e pulmonar grave.

O enfarte agudo do miocárdio pode ter várias causas predisponentes, nomeadamente aterosclerose, hipertensão arterial, obesidade, diabetes, tabagismo, drogas e alcoolismo.

É na gritante ausência  desses factores predisponentes que se baseiam alguns clínicos para discordarem da conclusão a que chegou o legista do Ministério do Interior.

Segundo um desses médicos, a aterosclerose, a primeira das hipóteses, é o estreitamento de vasos por deposição de gorduras e ocorre, geralmente, em indivíduos acima de 60-70 anos. Francisco Vieira morreu aos 37 anos. Ele não tinha antecedentes de hipertensão, a segunda hipótese. Atlético e presumindo-se com vida sexual muita activa (tinha duas mulheres), o falecido pediatra não era obeso. Como não era diabético, alcoólatra e fumador, caem por terra as restantes causas prováveis do EAM.

Além de que, diz a mesma fonte, o diagnóstico de EAM nunca se faz macroscopicamente; faz-se sempre histologicamente, isto é, pelo microscópio, exceptuando-se em situações de enfarte extenso e fulminante, que não foi o caso. 

Hoje, quarta-feira, “tomando a palavra” num post em que Ismael Mateus rotula como “irresponsáveis” todos os que questionam as causas “oficiais” da morte do médico Francisco Vieira, o nefrologista Matadi Daniel, que assume ter dúvidas em relação às circunstâncias em que ocorreu o fatídico facto, assegurou ter consultado dois reputados anatomopatologistas, um português e outro angolano, sobre o assunto. Ambos, segundo ele, lhe teriam dito que, feito a olho nu, (macroscopicamente) como foi o caso, o EAM  só é credível quando “inequivocamente extenso e fulminante. Não foi o caso”. 

Segundo Matadi Daniel, os dois colegas anatomopatologistas ter-lhe-iam também assegurado que o diagnóstico definitivo de enfarte agudo do miocárdio apenas é obtido por via histológica (quando não há lesão estrutural inequívoca) isto é, através de microscópio. 

Os dois colegas dizem que em mais de 30 anos de actividade anatomopatológica nunca fizeram diagnóstico pós morten de EAM macroscopicamente, só por exame histológico. O colega do Porto, que colabora com o Instituto de Medicina Legal daquela cidade, é categórico: nestas circunstâncias, o cadáver não deve ser enterrado, mesmo em oposição à família. Além disso, em casos da natureza como do que estamos a tratar, impõem-se exames toxicológicos”.

O nefrologista apela a que casos como o da morte do médico Francisco Vieira sejam analisados com o devido rigor científico para “que inadvertidamente” não se ponha em causa o profissionalismo dos médicos. 

Quanto ao comprimido em falta na lâmina de Viagra que a Polícia disse ter encontrado entre os pertences do morto, a fonte do CA admite que o poderoso estimulante sexual possa ter sido deliberadamente colocado entre o espólio de Francisco Vieira para atrapalhar as investigações. 

Para a idade do falecido, um comprimido de viagra é como se fosse uma Aspirina”. Por outro lado, diz, os “o enfarte agudo do miocárdio, derivado do esforço físico despendido durante o coito ocorre in situ e nunca longe. Ora, não é expectável que o médico tivesse praticado relações sexuais na via pública onde a Polícia diz que encontrou o cadáver”.

Adriano Manuel, o verdadeiro alvo?

Vice-secretário geral do Sindicato dos Médicos de Angola, Francisco Vieira era um dos líderes da actual greve dos profissionais do ramo. Esteve à testa da marcha dos médicos que sábado passado partiu do cemitério de Sant´Ana e culminou no largo da Independência. 

Francisco Vieira foi a enterrar hoje quarta-feira, sem que o EAM que lhe teria causado a morte fosse certificado histologicamente por, pelo menos, dois laboratórios distintos, conforme recomendam as boas práticas. 

As divergências entre o legista e alguns clínicos sobre as causas da morte do pediatra Francisco Vieira reacendem um antigo debate sobre a tutela do Instituto de Medicina Legal, actualmente detida pelo Ministério do Interior.

Algumas das mais controversas mortes têm envolvido agentes da Polícia ou membros do Ministério do Interior.

Com a autoridade que exerce sobre o Instituto de Medicina Legal, o Ministério do Interior sempre pode viciar autópsias realizadas sob sua égide.

Até hoje, ninguém foi criminalmente responsabilizado pela morte do médico Sílvio Dala, em 1 de Setembro de 2020. O médico regressava à casa, após 32 horas de trabalho, quando foi interpelado por agentes da Polícia Nacional  por não usar máscara facial numa viatura de que era o único passageiro. Levado a uma esquadra, foi violentamente atingido na cabeça. O óbito ocorreu no mesmo dia. 

A autópsia, também feita pelo Instituto de Medicina Legal, atribuiu a morte de  Sílvio Dala, que, coincidentemente, também era pediatra, a causas patológicas.

Em países que separam o trigo do joio, entidades como o Instituto de Medicina Legal dependem do Ministério Público.

A morte de Francisco Vieira, um dos maiores animadores da actual greve dos médicos, é interpretada em alguns círculos como uma mensagem de intimidação à classe e, em especial, ao seu líder sindical.

Aparentemente o objectivo começa a ser alcançado.

Terça-feira, circulou nas redes sociais um escrito em que alguém que se esconde por detrás de um nome falso diz que “vamos dar a mão à palmatória e reconhecer que em algumas situações as medidas que o Dr. Adriano tomou foram exageradas”. Mais adiante, o escrito, seguramente produzido por conhecidos “laboratórios”, atribui ao presidente do SINMEA o que chama de “ego maior que o corpo”. 

No mesmo dia e após ouvir o diagnóstico do legista do Ministério do Interior, do qual também não parece acreditar, o presidente do sindicado nacional do médicos, Adriano Manuel, exprimiu um misto de medo e desânimo.

Não sei se vale a pena continuar”, disse ele.