“Ficar para tia”: outrora, um receio; hoje, um objectivo para muitas Mulheres Negras

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    A Maternidade é, provavelmente, o papel que todas as mulheres são ‘’obrigadas’’ a desempenhar a certa altura das suas vidas. Uma obrigação imposta pela família; pela sociedade; pelos pares; pelo ‘’relógio biológico’’; pelo parceiro… enfim: por tudo e por todos que possam emitir uma opinião, ou causar algum tipo de pressão.

    Dentro da comunidade Africana, a mulher continua a ser vista, antes de tudo, como a ‘’mãe de alguém’’, ‘’filha de alguém’’, ou ‘’esposa de alguém’’ – e quase nunca como um ser único, completo por si só, com sonhos, desejos, vontades e emoções próprios. E é por isso mesmo que escolher conscientemente não ser mãe pode originar uma miríade de conflitos, tanto internos, quanto  (principalmente) externos, pois uma mulher negra que não é mãe não é ‘’completa’’, nem ‘’digna’’ de um título que lhe deveria ser atribuído simplesmente por ter dois cromossomas X, ou por se identificar como tal.

    Mas por que será que a cada dia que passa há mais mulheres negras a fugir desse ‘’destino’’?

    Para responder a essa questão, convém perceber que os fenómenos devem sempre ser analisados sob várias luzes: (antropo)social; histórica; cultural; política; emocional; religiosa; entre tantas outras.

    Se pensarmos na epigenética e em como essas ‘’memórias biológicas’’ têm um impacto directo na nossa saúde física e mental, podemos traçar uma linha directa entre o período da escravatura e as principais alterações comportamentais verificadas no seio da comunidade negra desde então.

    De um ponto de vista antropossociológico e histórico sabe-se que, durante a escravatura, os detentores de escravos usavam as mulheres negras como ‘’parideiras’’ constantes, obrigando-as a reproduzir quase que ininterruptamente, negligenciando totalmente todas as consequências nefastas – físicas e mentais – que isso acarretava (é possível ler a respeito de uma forma muito clara e detalhada no livro ‘’I am not a woman’’, de Bell Hooks). Essa agressão muitas vezes era ‘’amortizada’’ por promessas de liberdade, em troca de mais bebés, portanto, se não fossem mãe como resultado de estupro, ou outro tipo de violência, eram-no para poderem ter a ilusão de liberdade. Portanto, durante séculos, a fertilidade da mulher negra foi usada contra si mesma, pois quando não serviam de ‘’barrigas de aluguer’’, eram usadas como amas de leite. E ironicamente, a mesma sociedade que as usou como fábricas de procriação, posteriormente passou a rotulá-las de ‘’interesseiras’’, que dão à luz apenas pelos benefícios fiscais que daí advêm.

    É possível que essa onda crescente de mulheres Africanas sem filhos seja também o seu ‘’Grito do Ipiranga’’, a sua forma de reclamar o poder que há muito lhes fora usurpado. O poder sobre o seu corpo, sobre o seu tempo, sobre as suas prioridades e vontades.

    Numa outra perspectiva, mais socioeconómica e geográfica: com o desenvolvimento económico dos países Africanos – ainda que em muitos deles paulatino – e com a globalização, surgem novas oportunidades, novas ambições, novos estatutos sociais e novos posicionamentos para as mulheres. E consequentemente, muitas das vezes não são compatíveis (na sua análise) com a maternidade, pois esta ainda é uma fase embrionária para aquilo que pode vir a ser o ‘’virar do jogo’’ no que toca às posições sociais/hierárquicas que ambos os géneros ocupam e as revoluções são sempre acompanhadas de sacrifícios.

    Desengane-se quem acredita que estas mulheres acabam por se arrepender, pois vários estudos concluem que as que não têm filhos (independentemente da sua etnia) tendem a ser mais felizes, no sentido amplo, pois têm mais poder financeiro, mais autonomia e mais liberdade, em geral.

    Vale reforçar que a Maternidade toma vários contornos e vai além da gestação natural. Ela é  quase que inerente à condição de ser Mulher, principalmente da Mulher Negra, pois ela é – cientificamente – o princípio de tudo, a Primeira Mulher, do primeiro continente (o berço da humanidade). Historicamente, o papel de cuidadora esteve sempre latente na Mulher Negra, em todas as suas dimensões, cuidando dos seus e dos ‘’de terceiros’’, chegando mesmo muitas vezes a criar laços mais fortes do que os genéticos. Portanto, dizer que uma Mulher que não carregue em si um filho não é mãe não poderia estar mais longe da verdade e ser ou ‘’ficar para tia’’ há muito que não é algo pejorativo, ao contrário!

    Finalmente, é imperativo esclarecer que a utilização das palavras ‘’opção’’, ‘’escolha’’ e outras do mesmo universo não foi debalde , pois a não-maternidade é só mais uma opção – entre tantas outras – e isto não se trata de uma campanha, ou ode a essa escolha específica, ao contrário! O busílis da questão é precisamente a celebração da existência dessas escolhas e do direito que a Mulher tem de fazer uma, ou outra, nos seus termos e condições – sem coação, interferência, pressão, ou culpabilização de qualquer tipo – e de ser respeitada por isso!

    • Artigo publicado pela FORBES na sua versão para a África Lusófona, do dia 7 de Março